Opinião – A urgente convergência entre o Tributário e o Penal no combate ao crime organizado

É hora de garantir que o sistema penal acompanhe a complexidade das mudanças tributárias. Escreve Rodrigo Storino.

03/07/2025 10:37

“A fase de regulamentação da reforma representa um momento decisivo.”

Deputados comemoram aprovação definitiva da reforma tributária em sessão extraordinária na sexta-feira (15). (Foto: Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados)

A reforma tributária, simbolizada pela promulgação da Emenda Constitucional 132/2023, representa a mais ambiciosa reestruturação institucional do sistema fiscal brasileiro desde a Constituição de 1988. Trata-se de um esforço conjunto dos entes federativos e da iniciativa privada para racionalizar um sistema complexo, disfuncional e economicamente prejudicial. No entanto, diante de tamanho avanço no campo tributário, há um silêncio preocupante sobre os impactos dessa transformação sobre a estrutura penal de combate à criminalidade econômica – especialmente o crime organizado que se vale de corporações para sonegar tributos e lavar recursos ilícitos.

A regulamentação da reforma deve ser cuidadosamente calibrada para manter e fortalecer a atual estrutura estatal de repressão à sonegação fiscal e crimes a ela correlatos. Uma reforma que negligencie essa intersecção entre o direito tributário e o direito penal pode não apenas comprometer os seus próprios objetivos econômicos – como crescimento, competitividade e transparência – mas também favorecer a expansão do poder econômico de facções criminosas.

A sonegação fiscal no Brasil, segundo dados apresentados pelo Ministério do Planejamento em audiência pública, alcança cifras superiores a R$ 500 bilhões por ano. Esse desvio sistemático é operado, em grande medida, por redes organizadas que exploram a aparência de legalidade de empresas para viabilizar esquemas sofisticados de sonegação e lavagem de dinheiro. Esse é o verdadeiro “custo Brasil” pouco mencionado: o custo da criminalidade econômica e da captura do mercado formal por grupos ilícitos.

Apesar disso, a reforma tributária foi concebida com foco quase exclusivo nos aspectos fiscais e econômicos, sem levar em conta o crime organizado. O debate sobre a simplificação de tributos, unificação de bases e neutralidade da arrecadação ofuscou a análise das repercussões criminais da mudança. E elas são profundas. Atualmente, o Brasil conta com uma rede robusta de combate à criminalidade tributária e às fraudes estruturadas, formada por iniciativas como:

MPORT (Movimento Nacional dos Promotores da Ordem Tributária), que conecta membros do Ministério Público com interessados no combate a crimes fiscais, fraudes estruturadas e investigação financeira, promovendo uniformidade, troca de experiências e boas práticas;

GNDOET (Grupo Nacional de Defesa da Ordem Econômica e Tributária), grupo temático ligado ao CNPG (Conselho Nacional de Procuradores Gerais de Justiça), que institucionaliza e articula a atuação nacional dos Ministérios Públicos Estaduais;

GAESF (Grupos de Atuação Especial de Combate à Sonegação Fiscal), presentes nos Ministérios Públicos Estaduais, com atuação investigativa especializada, técnica, estratégica e resolutiva;

O CIRA, especificamente, representa uma verdadeira política de Estado. Em Minas Gerais, apenas no ano de 2024, recuperou cerca de R$ 2 bilhões. Projeções a partir do resultado mineiro indicam que em âmbito nacional o CIRA devolve cerca de R$ 50 bilhões por ano aos cofres públicos, impactando positivamente os orçamentos dos estados e permitindo a promoção das mais variadas políticas públicas. Além disso, o CIRA protege a livre concorrência e a integridade do mercado contra a infiltração do crime organizado, em defesa do investidor cumpridor de suas obrigações.

A criminalidade organizada brasileira vem sofisticando seus métodos. Facções criminosas já não se limitam ao tráfico de drogas ou ao “novo cangaço”. Elas têm migrado para atividades formalmente lícitas — como o setor de combustíveis — onde desenvolvem esquemas de sonegação e lavagem de ativos. Nesses casos, a estrutura empresarial serve como fachada para escoar capital ilícito.

Essa nova realidade exige atuação articulada entre estruturas dos Ministérios Públicos, como o GAESF e o GAECO (Grupos de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado). Ambos possuem presença consolidada nos estados e agora também na esfera federal. Sua atuação conjunta é essencial para desestruturar financeiramente essas organizações criminosas.

Reforma tributária: panorama e risco de retrocesso

A EC 132/2023 instituiu um sistema de IVA Dual, com dois tributos distintos: a CBS, de competência da União, e o IBS, de competência dos Estados e Municípios. Essa modelagem não foi uma escolha meramente técnica, mas sim uma solução política que reafirma e fortalece o federalismo fiscal brasileiro. Em vez de um IVA único e centralizado, que concentraria competências e receitas nas mãos da União, a opção pelo modelo dual consagra a autonomia dos entes federativos – um dos pilares da Constituição de 1988.

O federalismo fiscal não é apenas uma dimensão contábil ou arrecadatória do Estado. Ele é a espinha dorsal que sustenta todas as demais formas de federalismo: político, administrativo e institucional. Somente com autonomia financeira real é que estados e municípios podem exercer de forma plena suas competências constitucionais. Isso inclui, além do recebimento de sua parte na arrecadação, o direito de fiscalizar, cobrar e atuar repressivamente contra condutas ilícitas que ameacem essa arrecadação, como a sonegação fiscal, a lavagem de dinheiro e outras práticas correlatas.

A aplicação da Súmula 122 do Superior Tribunal de Justiça – que permite a reunião de processos e o julgamento conjunto, na Justiça Federal, de crimes federais e estaduais conexos – encontra limites constitucionais. Quando União e Estados constituem créditos tributários em face de um mesmo contribuinte, os processos criminais oriundos de cada crédito (federal e estaduais) são julgados separadamente pela Justiça Federal e Justiça Estadual. Isso ocorre porque os créditos são oriundos de processos administrativos tributários distintos, com beneficiários diferentes.

Nessa linha, sob o ponto de vista jurídico, nos crimes contra a ordem tributária, mesmo que haja conexão entre delitos federais e estaduais, não se aplica a Súmula 122 do STJ, uma vez que a competência da Justiça Estadual decorre diretamente da Constituição Federal, como consequência lógica do federalismo fiscal. Esse cenário normativo constitucional se mantém após a reforma tributária, não podendo-se confundir uniformização do sistema tributário com a sua federalização.

Eventual federalização da investigação e processo criminal representaria a retirada de competência da Justiça Estadual e retirada de atribuição dos Ministérios Públicos Estaduais no que se refere aos crimes de sonegação fiscal e crimes correlatos (organização criminosa e lavagem de dinheiro). Do ponto de vista prático, tal cenário de federalização traria drástico retrocesso, pois substituiria cerca de 50 estruturas especializadas – como os CIRAs, GAESFs e GAECOs estaduais – por apenas duas novas estruturas federais ainda em consolidação. O resultado seria o enfraquecimento do combate ao crime organizado e a contradição dos objetivos econômicos da própria reforma.

Competência territorial e pluralidade de vítimas

Outro desafio trazido pela reforma tributária será a fixação da competência territorial nos crimes de sonegação fiscal do IBS, cuja arrecadação é partilhada entre estados e municípios. Com a tributação no destino, teremos inúmeros entes prejudicados – o que demanda uma nova lógica de atuação. Defende-se, nesse ponto, a adoção de regras que estimulem a colaboração entre Ministérios Públicos estaduais com atribuição. Na ausência de um “comitê gestor penal” (órgão paritário de coordenação criado na esfera administrativa), a aplicação da regra do art. 70, §4º do CPP (domicílio da vítima e prevenção) pode representar um critério adequado, como já ocorre em outros crimes, como os crimes cibernéticos, desde que se garanta participação facultativa de todos os demais interessados no juízo criminal definido como competente. Contudo, tal proposição merece debates, aprofundamento e proposições legislativas e/ou jurisprudenciais.

As novas normas tributárias prometem avanços importantes para o ambiente de negócios, a arrecadação e a eficiência estatal. No entanto, tais benefícios estarão comprometidos se a reforma fragilizar a estrutura penal que hoje combate às fraudes tributárias organizadas. A lógica é simples: no direito penal, quanto mais estruturas – descentralizadas, articuladas e integradas – de combate ao crime, maior será a proteção da sociedade. A simplificação e uniformidade tributária não podem significar concentração e desarticulação penal.

A fase de regulamentação da reforma representa um momento decisivo. É hora de garantir que o sistema penal acompanhe, com igual rigor técnico e institucional, a complexidade das mudanças tributárias. Isso exige diálogo interinstitucional e interfederativo com efetiva participação dos Ministérios Públicos – titulares da ação penal pública –, bem como adaptação legislativa e jurisprudencial para a jurisdição criminal. Ignorar esses aspectos é abrir espaço para que o crime organizado ocupe os vácuos deixados pela omissão do Estado. A sociedade brasileira, a economia nacional e o próprio sucesso da reforma não podem correr esse risco.

 

 

 

Por Rodrigo Storino, professor de Direito em cursos de graduação e pós-graduação, é promotor de Justiça em Minas Gerais.

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