Opinião – Bia Spinelli, a cuiabana que andava com a história na bolsa de couro

Vítima de câncer, como tantas mulheres que seguraram o rojão da vida pública e da vida doméstica sem nunca deixar cair o requeijão da colher. Escreve João Guató.

10/07/2025 05:29

“Deixa a lembrança de que política já foi lugar de decência, mesmo quando feita em silêncio…”

Na manhã cinzenta de terça-feira, 8 de julho, o tempo parou um tantinho em Cuiabá. Parou ali na descida da Prainha, parou no saguão do Santa Rosa, parou — com um suspiro de respeito — no coração dos antigos do Centro Histórico. Morreu Bia Spinelli. E foi dessas mortes que desenham em silêncio o contorno de uma era.

Bia, nome inteiro Beatriz Helena Bressane Spinelli, era dessas mulheres que não precisavam levantar a voz para fazer ouvir. Quem conheceu sabe: bastava entrar na sala com aquela postura de quem já atravessou muita enchente e muito sol de 42 graus pra gente ajeitar o corpo na cadeira e baixar um pouco o tom da prosa. Filha de família tradicional, casada por quase seis décadas com o Ubiratan — que foi deputado, constituinte, conselheiro, presidente do TCE e personagem de manchete —, ela, Bia, sempre teve luz própria. Luz de lampião no meio do cerrado: constante, teimosa, quente.

Foi vice-prefeita de Cuiabá quando Frederico Campos ainda era uma referência de elegância e casimira, e depois vereadora — uma das poucas mulheres da Câmara naqueles anos em que as decisões vinham com paletó e cigarro. Falava pouco, mas olhava fundo. Tinha aquele jeito de quem, ao contrário de muita gente, lia os relatórios inteiros antes de votar. No fim da legislatura, ainda se lançou à prefeitura. Não levou, mas fincou o nome entre os grandes que tentaram.

Mas o que fica mesmo não são os cargos — e disso a gente vai se lembrando melhor com o tempo. Fica a imagem de Bia cruzando a Barão de Melgaço com vestido de algodão cru e sandália baixa, carregando um saco de documentos, talvez atas, talvez cartas antigas. Fica o jeito como falava da cidade — não como quem olha de cima, mas como quem plantou árvore em canteiro e mandou benzer coreto em festa de São Benedito.

Bia foi das mulheres que ajudaram a fazer a transição de uma Cuiabá colonial, quase matriarcal, para uma cidade que se urbanizou sem pedir licença — e às vezes sem pedir perdão. Estava presente nas conversas sérias e nas fofocas úteis, nas audiências públicas e nos bastidores das procissões. Era dessas que sabiam de tudo, mas não espalhavam — o que, convenhamos, é um dom.

O marido, Ubiratan, esse teve trajetória digna de enciclopédia. Constituinte de 1988, representante de uma época em que se fazia política com taquígrafo e cafezinho, foi acusado depois de empregar meio sobrenome no serviço público e embolsar mais que ministro do Supremo. Mas a memória de Bia parece atravessar isso tudo com uma elegância que nem mesmo o Diário Oficial consegue manchar.

No final, morreu discretamente, no hospital onde muitos outros políticos vão parar quando o corpo, enfim, cansa. Vítima de câncer, como tantas mulheres guerreiras que seguraram o rojão da vida pública e da vida doméstica sem nunca deixar cair o requeijão da colher.

Deixa três filhos, uma história e muitas calçadas por onde andou. E mais que isso: deixa a lembrança de que política já foi lugar de decência, mesmo quando feita em silêncio, mesmo quando feita por uma senhora de vestido claro e olhar firme.

Descanse, dona Bia. A senhora andou ao lado da história — e fez questão de não tropeçar.

 

 

 

Por João Guató, é jornalista cuiabano e remannescente da Comunidade Quilombola de Mata Cavalo, em Nossa Senhora do Livramento, Mato Grosso. Ele é conhecido por seu trabalho nas áreas de política, jurídico, cidades, esportes, cultura e reportagem, além de sua atuação como pesquisador e educador ambiental.