Opinião – Abuso de poder e show nas redes

O papel fiscalizador do Poder Legislativo é um pilar essencial do Estado Democrático de Direito, mas não deve ser confundido com a função administrativa de fiscalização. Escreve Pedro Felipe Silva.

02/08/2025 05:34

“Espetacularizar a atividade parlamentar gera um efeito perverso sobre a governança pública”

O papel fiscalizador do Poder Legislativo é um pilar essencial do Estado Democrático de Direito, mas não deve ser confundido com a função administrativa (Foto: Imagem criada utilizando Open AI

No cenário político contemporâneo, observa-se uma crescente intersecção entre a atuação de agentes públicos e a lógica do entretenimento digital, onde políticos, em especial do Legislativo, assumem o papel de influenciadores e pautam suas ações conforme a receptividade de sua base nas redes sociais. Essa midiatização excessiva, marcada pelo apelo ao engajamento e à viralização, pode comprometer a sobriedade e a finalidade institucional dos mandatos eletivos, exigindo, assim, a imposição de limites normativos e institucionais.

Do ponto de vista jurídico-administrativo, os agentes públicos atuam sob a égide do princípio da supremacia do interesse público, que orienta a gestão estatal na busca pelo bem comum. Nesse contexto, a Constituição Federal de 1988 consagrou o poder de polícia como instrumento da administração pública para a regulação de condutas privadas em prol da ordem e da coletividade. Tal prerrogativa, de caráter geral e impessoal, permite ao Estado impor restrições administrativas sem necessidade de vinculação a uma categoria específica de indivíduos.

Importa esclarecer que o poder de polícia não se confunde com a atividade policial propriamente dita, mas consiste na faculdade estatal de condicionar e limitar direitos individuais com vistas à proteção dos interesses coletivos. No entanto, essa prerrogativa não é ilimitada: seu exercício deve observar os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da motivação, de modo a evitar arbitrariedades e distorções que possam comprometer sua legitimidade e constitucionalidade.

Além do poder de polícia, que muitas vezes é distorcido e associado ao poder policial, temos a função fiscalizadora. O Art. 31 da Constituição Federal de 1988 diz que: “Art. 31 – A fiscalização do Município será exercida pelo Poder Legislativo Municipal, mediante controle externo, e pelos sistemas de controle interno do Poder Executivo Municipal, na forma da lei.”

O papel fiscalizador do Poder Legislativo é um pilar essencial do Estado Democrático de Direito, mas não deve ser confundido com a função administrativa de fiscalização típica dos órgãos técnicos competentes. A atuação parlamentar nesse campo se dá por meio de instrumentos formais, como Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs), requerimentos de informação e audiências públicas, não por meio de incursões diretas em estabelecimentos ou na supervisão operacional de atividades reguladas. A confusão entre essas esferas de atuação tem levado a distorções preocupantes, que, sob o pretexto da fiscalização, configuram abusos de poder e transformam a atividade legislativa em um espetáculo midiático.

Em Curitiba, tramita um projeto de lei que visa punir quem impedir o trabalho fiscalizatório dos vereadores de Curitiba em até R$ 50.000,00, um total contrassenso, pois atenta contra a dignidade de diversos trabalhadores. O risco desse desvirtuamento ficou evidente em um episódio recente: um vereador, ao ingressar de forma abrupta em uma unidade de saúde, perturbou o atendimento emergencial de um paciente de 93 anos que passava por um procedimento cardíaco crítico. O tumulto gerado comprometeu o ambiente hospitalar, desestabilizando a equipe médica e, tragicamente, o idoso veio a óbito. O episódio gerou ampla reação de entidades médicas e órgãos de controle. A fiscalização das condições de trabalho dos profissionais da saúde e da qualidade dos serviços prestados é, sem dúvida, uma atribuição relevante para garantir a eficiência da administração pública. Contudo, essa função já é desempenhada de maneira técnica e contínua pelos Conselhos Regionais de Medicina (CRMs) e demais órgãos especializados.

Mais do que uma deturpação do papel institucional do legislador, a prática de adentrar livremente em unidades de saúde, acompanhado de seguranças e câmeras, sem respaldo legal, constitui um desvio da função parlamentar e um atentado ao equilíbrio entre os Poderes. Esse tipo de conduta não apenas fragiliza a separação e a independência entre as funções estatais, mas também configura um abuso de poder ao extrapolar os limites da atuação fiscalizatória e invadir competências que são próprias de órgãos técnicos e administrativos.

Além disso, a espetacularização da atividade parlamentar gera um efeito perverso sobre a governança pública: ao priorizar ações midiáticas em detrimento do trabalho legislativo substancial, os parlamentares desviam o foco do debate sobre políticas públicas estruturantes e comprometem a credibilidade do Legislativo. A transformação do mandato em uma ferramenta de autopromoção digital enfraquece a institucionalidade da fiscalização e reduz sua seriedade, gerando insegurança jurídica e abrindo precedentes para novas distorções no exercício do poder.

Não cabe ao parlamentar moldar a norma para legitimar condutas inadequadas ou instaurar uma espécie de “patrulha do vereador” para produzir conteúdos virais. Pelo contrário, quando o legislativo abandona sua função essencial e se converte em palco de atuações performáticas, o real propósito da fiscalização se esvazia, comprometendo a efetividade do controle democrático e a seriedade da administração pública.

 

 

 

Por Pedro Felipe Silva é bacharel em Ciência Política, especialista em Política Pública, bacharelando em Direito e analista político.

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