Em vez de discutir reformas estruturais que poderiam eliminar privilégios, o país se perde em disputas sobre aumentos pontuais de impostos já existentes. Escreve Magno Karl.
07/08/2025 05:37
“O episódio ilustra um problema mais amplo: a deterioração da qualidade do debate fiscal.”
Autoritarismo fiscal: ao tentar aumentar o IOF por decreto, o governo Lula despreza o Parlamento e impõe ao povo a conta dos próprios erros. (Foto: André Borges/EFE)
A história do decreto que elevou o IOF para 3,5% sobre operações cambiais e cartões internacionais é um manual de como não se faz política fiscal. O decreto original, de 22 de maio, interrompeu a trajetória de redução gradual do imposto e fixou a alíquota em 3,5% para operações de saída de recursos do país, revertendo anos de política de desoneração progressiva.
Inicialmente apresentada como “medida emergencial” para reforçar o caixa e depois reembalada como instrumento para “tributar os ricos em benefício dos pobres”, a elevação do IOF revela mais sobre as fragilidades do processo decisório brasileiro do que sobre qualquer estratégia redistributiva coerente. A rejeição categórica pelo Congresso, com acachapantes 383 votos contra 98 na Câmara, expôs o isolamento político do governo em uma questão fiscal fundamental.
Após perder no campo da política, o governo recorreu ao tapetão do STF. Sem obter um consenso na heterodoxa audiência de conciliação entre os poderes Executivo e Legislativo, o ministro Alexandre de Moraes decidiu ignorar a manifestação do Congresso, fez um pequeno ajuste e deu ganho de causa ao governo. Mais grave: determinou que a cobrança majorada da nova alíquota deveria ser retroativa contra os contribuintes, contando desde o momento da publicação original do decreto presidencial. Um aumento evidente do custo da insegurança jurídica, que piora o ambiente de negócios.
O problema não é apenas político, mas conceitual. O IOF nasceu como instrumento extrafiscal para regular fluxos financeiros, não como fonte primária de arrecadação. Utilizá-lo como atalho para financiar o Tesouro subverte sua natureza jurídica e contorna o debate parlamentar que deveria acompanhar qualquer elevação significativa da carga tributária. Com a promessa de arrecadar R$20,5 bilhões, o governo optou pelo caminho mais fácil em vez de enfrentar o debate estrutural sobre gastos públicos.
Os efeitos práticos desmentem a narrativa redistributiva. Compras e serviços pagos no exterior passaram a ter IOF fixo de 3,5%, penalizando justamente a classe média que busca alternativas mais baratas no mercado internacional. Pequenos empresários que dependem de capital de giro sentem o impacto do IOF convertido em juros mais altos. A elevação do custo do dinheiro pressiona a taxa básica de juros, produzindo exatamente o oposto do que se esperaria de uma política voltada ao alívio dos mais vulneráveis.
O governo já havia bloqueado ou contingenciado R$31,3 bilhões em despesas, mas preferiu buscar receitas adicionais a enfrentar resistências ao corte de gastos ou à revisão de subsídios. Essa escolha revela prioridades distorcidas: em vez de tornar a atuação do Estado mais racional, opta-se por sobrecarregar contribuintes que já se responsabilizam por um carga tributária grande demais para seu nível de renda.
A sequência de eventos após a edição do decreto é ainda mais reveladora. Diante da pressão parlamentar, o governo chegou a sinalizar que substituiria o decreto por “outras medidas compensatórias”, mas manteve a disputa no Supremo Tribunal Federal mesmo depois da rejeição legislativa. As Advocacias do Senado e da Câmara tiveram que pedir ao STF que reconheça como legítima a decisão do Congresso, um constrangimento institucional que expõe o governo como mais dependente do Judiciário do que do Parlamento para aprovar medidas sensíveis.
O episódio ilustra um problema mais amplo: a deterioração da qualidade do debate fiscal brasileiro. Em vez de discutir reformas estruturais que poderiam eliminar privilégios setoriais, simplificar o sistema tributário e aumentar a progressividade, o país se perde em disputas sobre aumentos pontuais de impostos já existentes. É um debate de baixa qualidade que posterga indefinidamente a modernização tributária de que o país precisa.
Para construir um sistema fiscal minimamente legítimo, três elementos são indispensáveis: progressividade real, disciplina nos gastos públicos e respeito ao processo democrático. O IOF elevado por decreto falha nos três critérios. Não é progressivo, pois atinge desproporcionalmente a classe média. Não demonstra disciplina fiscal, pois evita o debate sobre redução de gastos. E não respeita o processo democrático, pois contorna o Parlamento.
A reforma tributária aprovada pelo Congresso oferece uma oportunidade histórica de substituir impostos regressivos por bases mais equitativas e transparentes. Mas enquanto o governo preferir atalhos arrecadatórios a reformas estruturais, o país permanecerá preso ao círculo vicioso de aumentos improvisados, disputas institucionais e crescente descrença pública no sistema fiscal.
O IOF pode ser uma ferramenta útil para regular fluxos financeiros. Seu uso indiscriminado como fonte de receita, contudo, mina não apenas sua eficácia técnica, mas a legitimidade democrática do próprio sistema tributário. Uma democracia jamais deveria ignorar o velho princípio que ecoa desde a Revolução Americana: não há taxação legítima sem representação. Em tempos de polarização, essa é uma conta que o país não pode pagar.
Por Magno Karl é diretor executivo do Livres e especialista em política fiscal.