08/03/2016 17:57
Como pensar complexamente a política, a economia e todos os demais assuntos
Roberto Mangabeira Unger lembra, faz muitas décadas, que há outras alternativas para a dualidade Capitalismo e Socialismo. Já sabemos que é possível construir um Capitalismo mais socialista, como muitos dos países mais desenvolvidos do mundo fizeram, a exemplo de nórdicos, França, Austrália e Canadá. Também é possível construir um Socialismo mais capitalista. Vide a China e, quem sabe, Cuba no futuro.
Observe que a substituição do Feudalismo pelo Capitalismo, como também explica Mangabeira Unger, não foi propriamente a substituição de um sistema por outro, mas o aparecimento de um conjunto de novas instituições que remodelaram as relações da época. O sucesso socioeconômico não requer necessariamente a substituição de sistemas, mas o aperfeiçoamento gradual e experimental das estruturas formadas dentro deles.
É uma tradição humana, sobretudo ocidental, dualizar o mundo. Essa foi a forma de percepção desenvolvida nos últimos séculos, pois as contraposições ajudam a perceber as coisas. Separamos “o joio do trigo”, reduzindo aquele emaranhado de informações a partes, que são mais fáceis de analisar.
Essa visão reducionista baseada em dualidades, por outro lado, dificulta uma compreensão mais complexa, aquela que permite inter-relacionar as partes e reconhecer que, quase sempre, há (ou pode haver) um pouco da parte antagônica dentro da própria parte que com ela antagoniza. A redução é um passo para a complexidade. Ela não é o fim do conhecimento.
Vários dos graves problemas políticos e econômicos decorrem da falta de complexidade no pensamento. Conflitos entre direitas e esquerdas são um exemplo crasso.
A maior parte da direita na América Latina nega que a redução da desigualdade seja importante ou primordial. Alguns não negam isso, pois sabem que é moralmente errado, então dizem que querem reduzir as desigualdades, mas apenas discordam sobre as medidas adequadas.
Ocorre que eles defendem medidas provadas erradas historicamente, como a redução da progressividade e o aumento da regressividade da tributação sob argumentos de trazer mais eficiência para economia, quando é algo elementar a necessidade de medidas realizadoras da eficiência em comunhão com a equidade, dando um peso maior a essa em países que são mais desiguais, exatamente o caso do Brasil.
Do outro lado, alguns esquerdistas defendem medidas ineficientes para a realidade brasileira, pois não têm conhecimento mais aprofundado e soa para eles correto suportá-las, como é o caso do Imposto sobre Grandes Fortunas.
A maior parte da esquerda na América Latina nega (ou desconhece) que muitas medidas supostamente sociais causam distorções econômicas graves, desequilíbrios fiscais e, por vezes, terminam beneficiando até mais os ricos, como, dentre vários outros exemplos brasileiros, universidade públicas gratuitas indiscriminadamente para todos, isenções ou reduções de tributos incidentes sobre alimentos básicos e aposentadorias muito cedo.
Nessa guerra emocionalmente desequilibrada e tecnicamente fraca entre direita e esquerda da América Latina, o povo sai perdendo. A direita acha que liberalizar ao máximo é o caminho, ou seja, não fazer nada, deixar o jogo correr, lei da selva, o que beneficia quem já é rico, pois os leões, aqueles no topo da cadeia econômica, vão fazer imperar as leis que mais lhe beneficiem. Quando há, no entanto, riscos de outros leões tomarem seus lugares ou simplesmente porque eles querem ainda mais regalias, procuram o Estado para celebrar “pactos” e, então, pedem intervenção.
A esquerda acha que intervir ao máximo é o caminho, ou seja, o Estado termina tomando um monte de medidas que, no médio a longo prazo, pioram a situação da sociedade ou que não são tão efetivas quanto outras mais complexas.
Adotando uma posição intermediária entre essas posições radicais, apoio-me na obra de Mangabeira Unger para propor a criação de um piso de serviços públicos mínimos (e, portanto, mais baratos) destinados a todos e, ao mesmo tempo, um teto de iniciativas vanguardistas específicas a serem mais direcionadas aos mais pobres, que possam alimentar o piso e o centro.
O centro consiste em parcerias público privadas de variadas formas de interação, com o Estado equipando o setor privado para que possa colaborar na prestação de serviços públicos. Essas ideias são radicalizações de iniciativas já existentes isoladamente no mundo e que dependem de uma organização institucional complexa para mudarem a perspectiva que se tem do Estado e das suas relações com o setor privado.
Escapa-se, portanto, de uma visão onde o Estado deve intervir ou não, para uma visão onde ele coopera e estabelece parcerias com o setor privado, gerando empregos e melhoria de qualidade nos serviços públicos.
Para entender que até um assassino e um corrupto têm direitos – mesmo porque, para ser considerado como tal, isso deve ser cabalmente provado em um processo judicial – é preciso pensar complexamente. Para compreender que a limitação dos direitos de uns é o que garante os direitos de muitos outros, é preciso pensar complexamente.
Muitos não conseguem entender, por exemplo, que ideias como: a) Lula cometeu crimes; b) estão sendo tomadas muitas decisões por fora da lei, como conduzir investigado coercitivamente para depoimentos sem prévia intimação; c) a Lava Jato está, em alguns aspetos, mudando o país para melhor; e d) alguns envolvidos na Operação Lava Jato estão protegendo aqueles que fazem oposição ao PT, minando a capacidade da operação de mudar o país; podem coexistir e serem verdades, todas ao mesmo tempo.
Uma análise da Lava Jato, assim como de tudo mais, precisa saber lidar com os benefícios e custos dela, buscando corrigir os erros para maximizar benefícios e minimizar custos.
É ótimo ver pessoas que cometeram crimes sendo presas. É péssimo ver pessoas sendo presas sem provas apenas para que se obtenha suas delações ou sendo conduzidas coercitivamente a depor sem prévia intimação e recusa injustificada. Essas pessoas têm família, reputação e podem ser, quem sabe, inocentes.
Qual o limite do ódio à corrupção e aos corruptos? A liberdade, conquistada por meio de duras lutas, com perda de muitas vidas ao longo de séculos, tanto aclamada por alguns ao tratar de economia, não parece ser tão importante quando se trata de Lava Jato.
Moro é bom ou ruim? Essa é a menor das preocupações. Ele comete atos bons e ruins, assim como toma decisões que podem ser boas sob algumas perspectivas e ruins sob outras. Não se esqueça que Moro também está sujeito à lei e pode vir a ser preso se cometer crime, como usar do cargo para conferir vantagens a pessoas ou grupos.
É melhor ser de direita ou de esquerda? A direita e a esquerda se colocam em cada país de uma forma. O vencedor do Prêmio Nobel de Economia, Paul Krugman, escreveu inúmeros textos para defender que o limite de idade de aposentadoria não deveria aumentar nos Estados Unidos. Então, ele não deve aumentar no Brasil? Não é bem assim, pois o limite de idade para aposentadoria nos Estados Unidos é 65 anos desde a década de 30 do século passado, enquanto que as pessoas têm se aposentado com 52 a 55 anos no Brasil nas últimas décadas, inclusive os ricos, que quase sempre continuam trabalhando e recebendo duas rendas.
Por um período de 12 anos (1951 a 1963), quando os Estados Unidos tiveram um dos maiores crescimentos econômicos da sua história, a alíquota máxima do Imposto de Renda era 91% e não havia tanta reclamação como há hoje no Brasil quando se fala em aumentar a alíquota máxima do imposto.
Por um período seguinte de 15 anos (1965 a 1980), a alíquota máxima do IR foi de 70% nos Estados Unidos. Milton Friedman, um dos melhores neoliberais que já existiram e ídolo deles, defendia por um tempo que a alíquota máxima devia ser 50%.
Se alguém defende isso no Brasil hoje, e eu defendo, é chamado por alguns de maluco e Friedman é citado para servir de autoridade contra a intervenção supostamente desmesurada do Estado.
A alíquota máxima do Imposto de Renda brasileiro foi sempre igual ou maior do que 50% entre 1947 e 1987, mas ninguém lembra disso. Tudo depende de a quem é aplicada uma alíquota como essa. Se aplicada a quem ganha mais de R$ 100.000,00, ele ficaria com uma renda líquida maior do que R$ 50.000,00 devido às deduções e à tributação por faixas de alíquotas. É inviável isso?
Pensar complexamente permite entendermos melhor os problemas, as pessoas e o mundo de um modo geral. Somos pessoas melhores e vivemos melhor quando conseguimos, por exemplo, buscar aquilo que existe de positivo nos demais e procurar lidar bem com o que existe de negativo.
Voltando a Capitalismo e Socialismo, Karl Marx foi um dos maiores pensadores dos últimos séculos. O conhecimento que ele construiu nos mais diferentes ramos, como Filosofia, Sociologia, Economia, Política e outros, precisa ser mais conhecido e estudado, porém a direita o demoniza, eliminando qualquer interesse pela obra dele.
Na outra ponta, a esquerda apenas consegue ver o Marx propositor do Comunismo por meio do Socialismo e através da luta de classes. Muitos que endeusam Marx mal conhecem a sua obra.
Marx viveu no século XIX, momento completamente distinto daquele em que se vive no início do século XXI, 150 anos depois, ainda que ele possa ser considerado atual em vários aspectos. Outro elemento do pensamento complexo é compreender a historicidade, uma ideia central na obra de Marx. Pessoas, instituições, tudo evolui ao longo do tempo. É preciso olhar o mundo em cada período, em suas circunstâncias, para uma compreensão mais acurada.
O Socialismo deu certo no século XX? O Socialismo pode dar certo hoje? Difícil dizer. Primeiro, é preciso definir o que é “certo” para cada um. Para muitos, não ter ninguém passando fome, ter boa educação e boa saúde já é dar certo. Deste modo, Cuba seria um case de sucesso. Entendo que, para dar certo, um país precisa ter democracia, participação da população nas tomadas de decisões, livre iniciativa, incentivo ao empreendedorismo, liberdade de expressão e outros direitos mínimos que não parecem existir em Cuba.
Por que o Socialismo não deu, nem provavelmente daria certo agora? Porque o mundo ainda é movido a dinheiro, a capital. Um sistema econômico que propõe o desapego do dinheiro dificilmente seria viável por uma via democrática. No entanto, em caso de evolução humana para outro estágio moral, pode ser que ele se torne o sistema ideal, ainda que com alguns aprimoramentos.
Observe que em países mais desenvolvidos, mesmo que as pessoas sejam capitalistas, até por estarem inseridas em uma sociedade desse tipo, há um senso muito mais forte de obrigação com o todo, de fazer as coisas simplesmente para dar o melhor de si, para ser reconhecido como alguém competente etc. A necessidade do dinheiro como signo de preço que medirá o retorno do esforço de cada um é muito maior em países com sociedades menos desenvolvidas.
A tendência é que, com o avanço das sociedades, especialmente sob o aspecto moral, procure-se cada vez mais colaborar para o sucesso próprio e do todo ao mesmo tempo. As pessoas poderão se dedicar apenas a serem boas no que fazem e terem retorno se obtiverem sucesso. Elas não viverão para ganhar mais dinheiro e ostentar riqueza. Quando isso começar a acontecer com mais frequência, o Capitalismo, tal como é hoje, sucumbirá.
Basta olhar para os países com melhor qualidade de vida do mundo, que têm um nível de democracia social muito elevado. Por exemplo, a alíquota máxima do IR chega a 61% na Finlândia e na Dinamarca. O Capitalismo já passou por um nível de remodelamento social maior nesses países. Esse é o caminho do sucesso, mas não estou falando de medidas populistas ou atécnicas, que não realizam bem o social e apenas atenuam ou mascaram os efeitos negativos do Capitalismo. Precisa-se de uma nova economia, uma nova organização social.
Com o avanço tecnológico, menos pessoas têm que trabalhar e, assim, é possível se dedicarem mais às suas famílias, à sociedade, à espiritualidade ou simplesmente ao lazer. Isso abre mais espaço para uma forma de organização em que pessoas agem mais para o todo do que para si próprias, em que cooperam mais do que competem.
A tecnologia não precisa levar necessariamente ao desemprego, porque o trabalhador não precisa ser precarizado para sempre. Com uma maior democratização da oferta, é possível ter uma sociedade com mais acesso aos meios de produção e que independa do emprego. Numa sociedade mais desenvolvida, mais pessoas conseguem empreender.
Os governos deveriam, por exemplo, criar incentivos e facilitadores para que todos se engajassem em entidades com fins sociais, sobretudo aqueles beneficiados por programas sociais, que poderiam, assim, desenvolver uma atividade, aprender algo e dar uma contribuição à sociedade.
Marx era um gênio e ainda não se pode perceber a dimensão disso, pois não chegou a hora. O nível de um gênio é percebido pelo alcance das descobertas dele no tempo e é natural que um gênio, por estar muito à frente do seu tempo, não seja compreendido durante a sua vida ou mesmo logo após sua morte. Vide a recente descoberta das ondas gravitacionais no espaço, vislumbradas por Einstein no início do século passado.
O Socialismo, ou uma versão melhorada dele, será descoberto num futuro talvez não tão distante, quando a sociedade estiver preparada por tomar essa decisão democraticamente, como um modelo econômico viável e mais justo. Até lá, cabe aprofundar o Capitalismo social e democraticamente, com as técnicas mais avançadas hoje existentes, e não com populismo e moralismo quase sempre subservientes a interesses. Para tanto, é preciso pensar com muito mais complexidade.
Agradecimentos ao mestre Roberto Mangabeira Unger pela atenção, ensinamentos e oportunidades.
Agradecimentos aos amigos Daniel Almeida Filho, Beatriz Meirelles, Renata Mendonça e Rodrigo Medeiros pela leitura do texto, comentários e sugestões.
Por Marcos de Aguiar Villas-Bôas - Conselheiro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais - CARF, advogado licenciado, doutor em Direito Tributário pela PUC-SP, mestre em Direito pela UFBA, atualmente faz pesquisas independentes na Harvard University e no MIT - Massachusetts Institute of Technology.