Opinião – Quem não usa máscara é egoísta

23/07/2020 14:57

Pessoas em frente ao Hran (Hospital Regional da Asa Norte), unidade médica de referência no tratamento da covid-19 em Brasília: ”É preciso lidar com grupo resistente”

Máscara é “coisa de viado”teria dito Jair Bolsonaro há alguns dias. Se verdadeira, a frase seria mais uma contribuição para a lista de declarações infelizes proferidas pelo presidente desde o início da crise do coronavírus.

Para entender o estrago que esse tipo de visão pode provocar na adesão a uma prática que salva vidas, vamos buscar um conceito bastante interessante da literatura acadêmica de comportamento do consumidor. Trata-se da ideia de metaobjetivos. Já explico.

Antes, precisamos entender que a troca está na raiz dos relacionamentos sociais, não apenas em contextos comerciais, como a compra de uma televisão, por exemplo. E é por isso que um conceito bem desenvolvido na literatura de consumo pode nos ser útil.

Considere o leitor um amplo leque de comportamentos sociais e que envolve, na essência, uma troca: além da adoção das máscaras, a escolha de um parceiro de vida, de um candidato a cargo político, a inscrição como doador de medula óssea, o bom comportamento no trânsito.

Nesses contextos, estamos sempre trocando alguma coisa –dinheiro, tempo, nossa identidade– por benefícios, que muitas vezes são emocionais e simbólicos. A troca ocorre quando há valor para as partes envolvidas, isto é, quando os benefícios percebidos são superiores aos custos incorridos.

Agora podemos voltar aos metaobjetivos. Em linguagem simples, são os objetivos implícitos que procuramos atender quando precisamos realizar escolhas em processos de troca.

O primeiro e mais óbvio deles é o de maximizar a precisão da decisão ou fazer a escolha certa. Isso é fácil de perceber quando se trata da aquisição de um celular ou mesmo da escolha de um candidato a prefeito. Queremos o produto ou a pessoa que tenham determinados atributos.

Por outro lado, isso se torna mais difícil quando se trata de comportamentos de interesse social, como a doação de sangue ou o uso de proteção facial, porque os atributos são intangíveis ou imprecisos e a competição ocorre não entre produtos, mas com as ações habituais do nosso cotidiano.

Avançando e já já vai ficar claro aonde quero chegar. O segundo objetivo implícito em toda escolha é o de minimizar o esforço cognitivo. Pensar custa caro em termos biológicos e psicológicos. Quanto mais atalhos para a tomada de decisão e quanto mais fácil todo o processo, melhor. Evidentemente, quando se trata de decisões com mais impacto na nossa vida, especialmente por conta do risco de arrependimento, tendemos a empregar bastante esforço mental. Mas isso é mais exceção do que regra.

Falamos em arrependimento antecipado e o terceiro metaobjetivo envolve justamente a experiência emocional associada com a escolha de um produto ou comportamento. Implicitamente, procuramos, acima de tudo, minimizar as emoções negativas, como incerteza, vergonha e ansiedade. Muita gente deve ter ficado com a sensação de “pagar mico” ou com receito de rejeição social no início da temporada de uso das máscaras, por exemplo.

Finalmente, o quarto e, na minha visão, o mais importante objetivo implícito em todo processo de escolha, que amarra e dá consistência aos metaobjetivos anteriores, é o grau em que a decisão pode ser justificada a terceiros. A aprovação social é um alimento fundamental do espírito humano. Aqui é onde a versão preconceituosa de que máscara não é “coisa de homem”, em um país machista e homofóbico, tem mais potencial para causar estrago.

E olha que não é difícil justificar a adoção das proteções faciais em um cenário de pandemia e catástrofe humanitária.

A literatura de ciência comport amental aplicada recomenda não estigmatizar quem não adota um comportamento de interesse social, como o uso de preservativos ou a condução responsável no trânsito. Já vimos neste espaço como é equivocada, por exemplo, a estratégia do esculacho comumente empregada neste último contexto (trânsito).

Em outras palavras, a melhor estratégia envolve geralmente, entre outras ações, focar nas práticas que se quer estimular.

Ainda assim, acho que no caso das máscaras cabe uma exceção e o enquadramento na comunicação social deveria também enfatizar o egoísmo daqueles que, tendo recursos, saem às ruas de cara pelada, assumindo o risco de contaminar seus concidadãos.

Felizmente, costuma ser uma minoria, mas suspeito que haja uma predominância grande nesse segmento dos chamados super espalhadores, ou pessoas que transmitem mais o vírus. Domar a besta da pandemia exige, em resumo, melhores estratégias para lidar com esse grupo resistente.

 

 

 

 

Por Hamilton Carvalho, 48 anos, estuda problemas sociais complexos. É doutor em Administração pela FEA-USP, mestre em Administração pela mesma instituição, membro da System Dynamics Society e da Behavioral Science & Policy Association.

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