05/11/2021 10:55
”A General Motors acaba de informar que a partir de 2035 somente fabricara veículos elétricos”
Temos presenciado recentemente uma série de atividades legislativas de modificações na estrutura regulatória do Setor Elétrico. Realmente já passaram mais de vinte anos da reforma institucional. Portanto nos parece adequado discutir que reformas realmente são necessárias.
Na modernização que agora se discute, alguns pontos do modelo original e outros resultantes da mudança da estrutura atual das fontes de energia necessitam ser rediscutidos pois apresentam dificuldades com possibilidade de aumentarem no futuro.
O primeiro fator que deve ser rediscutido se refere a estrutura da matriz de geração de energia elétrica existente vinte anos atras e a atual. Na época de reforma a capacidade geradora e o volume de energia gerado (em 1999) era 93% de origem hidroelétrica. Agora, a geração hidroelétrica (em 2019) representou 63,5%, e forte participação de novas formas de energia, sendo 8,95 de eólica e 1,1% de solar fotovoltaica, ambas com fortíssimo incremento de instalações recentes. Essas novas formas de energia são de natureza intermitente, ou seja, não geram continuamente, e trazem para o setor uma serie de novas necessidades, que comentaremos adiante.
Portanto, cada hidrelétrica tem sua garantia física determinada a partir das condições do longo prazo considerando a variabilidade hidrológica à qual uma usina está submetida e o que cada usina pode fornecer ao sistema, assumindo um critério de risco de não atendimento. Na prática, isto é obtido através de simulações da operação conforme metodologia aprovada pela ANEEL. A pergunta sem resposta é porque não se utilizou uma metodologia mais simples para remunerar o investimento dos ativos de geração, semelhante ao usado em transmissão, com uma receita paga por disponibilidade de capacidade.
Para contemplar as condições climáticas de diversas regiões, foi criado o Mecanismo de Realocação de Energia (MRE) concebido para compartilhar os riscos financeiros associados à comercialização de energia pelas usinas hidráulicas despachadas de modo centralizado e otimizado pelo ONS. Caso a quantidade de energia gerada seja menor do que a garantia física, as hidrelétricas têm que pagar a diferença. Isto representa o risco hidrológico, do qual o GSF (Generation Scaling Factor) é a medida.
Transformações no perfil do parque gerador brasileiro afetaram a predominância hidrelétrica (de 93% para 63,5%), amplificando a magnitude das oscilações dos GSF a cada ano. Isso se deveu, principalmente, à interrupção na construção de novas hidrelétricas de grandes reservatórios. Além disso, os investimentos fortes nos últimos anos em geração eólica e solar reduziram a capacidade de regularização hidrelétrica do sistema, aumentando o risco hidrológico.
Em artigo de Paulo Cesar Fernandes da Cunha publicado pela FGV, o autor indica: “É senso comum que o Mecanismo de Realocação de Energia, concebido para a mitigação de riscos hidrológicos, não é capaz de manejar a totalidade dos riscos trazidos ao segmento da geração pelas adotadas políticas públicas. O risco sistêmico representado pelos prejuízos já acumulados, bem com as projeções para déficits vindouros exigem uma solução extraordinária para superar o impasse no curto prazo. Independentemente da futura recomposição dos reservatórios, em benefício de excelência de operação interligada, será necessária uma reavaliação do instrumento MRE, face às novas configurações do sistema”.
Esse sistema de distribuição do risco hidrológico não tem funcionado adequadamente tendo inclusive vários questionamentos até do TCU.
Quanto aos efeitos do aquecimento global, um relatório recente da International Energy Agency de título Climate Impacts on Latin American Hydropower conclui que a capacidade média regional de geração das hidroelétricas durante o período 2020 a 2059, quando comparadas com o período 1970-2000, devera reduzir-se em média de 8% (entre 7.5% a 9.6%), e de 11% (na faixa de 7.5% a 17.4%) no período 2060 a 2099. Portanto, o tratamento do risco hidrológico é sim um fator de preocupação.
O terceiro fator que deve ser rediscutido é o papel das comercializadoras. Devido a escolha do tratamento de Garantia Física, a forma de contratação é complexa. Adicionalmente na estrutura contratual foram incluídos intermediários, os “comercializadores”, que não agregam valor e criam riscos pois as vezes vendem energia que ainda não tinham comprado e várias vezes criaram problemas.
Repito declarações publicadas recentemente de dirigente da CCEE que: “Um outro foco de atenção da CCEE está na questão das comercializadoras. Atualmente há 3 empresas em operação assistida, uma desligada oficialmente a partir de 1º de janeiro, e outra, que teve a deliberação do Conselho para seguir o mesmo caminho”.
O quarto fator que deve ser rediscutido se refere a participação de fontes intermitentes (eólica e solar) em nível crescente passando a representar parcela importante no mix de geração.
Devido a intermitência dessas fontes, duas preocupações surgem: (i) existência de capacidade de geração adequada para seguir a curva de carga (load following); e (ii) existência de dispositivos necessários à operação adequada do sistema tanto quanto aos níveis de tensão quanto de estabilidade.
Quanto a confiabilidade de capacidade (load following), para garantir a continuidade de fornecimento, as novas fontes intermitentes de energia devem ser parte de um mix que permita o atendimento contínuo das cargas pelas 24 horas dos 365 dias do ano. Elas devem ser complementadas por armazenamento de energia seja por baterias, seja por reservatórios de hidroelétricas, ou até por plantas térmicas convencionais.
Quanto a confiabilidade operativa (estabilidade de tensão e de sincronismo) o sistema deve conter máquinas girantes de geração ou compensação síncrona, ou inteligência eletrônica para inserção de dispositivos de controle de tensão e de energia (através de baterias) quando flutuações ocorram.
Geradores convencionais de eletricidade fornecem segurança operacional (estabilidade) do sistema elétrico, enviando o sinal necessário para que as maquinas automaticamente se ajustem aumentando ou diminuindo sua geração mantendo o sistema em equilíbrio estável. A chamada capacidade de “rump-up” de geração, ou seja, rápida variação de geração para acomodar variação da intermitentes.
As fontes eólicas e fotovoltaicas não têm essa capacidade. Seus conversores não fornecem estabilização de frequência e ao contrário, necessitam do sinal da frequência do sistema para operar adequadamente. Isto exigirá implantação de Adequação do Sistema para atender a carga plenamente. E para tal, ferramentas adicionais são necessárias. Que podem ser: (a) fontes convencias de partida rápida; (b) armazenamento de energia (baterias); (c) hidroelétricas convencionais ou reversíveis; (d) cargas controláveis (contratos flexíveis – smart grid); ou (e) interconexão com outros sistemas.
A disseminação de geração solar resultou no quinto fator que merece ser rediscutido, a saber, a grande capacidade de Geração Distribuída. No ano de 2020 a capacidade instalada de geração solar foi de 7,9 GW, com mais da metade (4,5 GW) na modalidade geração distribuída. Essa quantidade de instalações, além dos aspectos de sobrecarga ao setor acima descritos pela sua intermitência, causam um custo adicional aos consumidores cativos das distribuidoras pois essa geração distribuída se usufrui do sistema para armazenar seus excessos de geração e consumir nas horas em que não tem incidência solar, sem pagar pelo uso do sistema. Quem paga esse custo é o consumidor cativo. Portanto, nada mais adequado do que os proprietários de geração distribuída pagarem pelo custo que causam ao sistema. Hoje existe no Congresso um PL 5829/2019 que poderá perpetuar esses subsídios, o lobby dos interessados em manter subsídios atua fortemente.
Em artigo recente de autoria de Manoel Negrisoli fica demonstrado claramente que uma instalação de GD na verdade deveria ser tratada como consumidor normal para a parcela da energia que consome da rede e como um produtor independente para a parcela de energia que injeta na rede. Ou seja, sem subsídios que fatalmente recaem no custo dos consumidores cativos das distribuidoras. Outro estudo recente coordenado pela professora Virginia Parente, do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo, mostra que o impacto para os consumidores cativos causado pelos sistemas fotovoltaicos de geração distribuída pode variar de R$ 97 milhões a R$ 1,5 bilhão
O sexto fator que deve ser rediscutido se refere a encargos que poderiam ser eliminados. A Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) foi criada com o objetivo de promover a universalização do serviço de energia elétrica em todo o território nacional, custear os descontos nas tarifas concedidos a das classes rural e residencial baixa renda, garantir a competitividade da energia produzida a partir de fonte eólica, pequenas centrais hidrelétricas, biomassa, gás natural e carvão mineral. É compreensível manter-se a finalidade social da CDE para universalização do serviço, consumidores rurais e de baixa renda. Porém não faz mais sentido penalizar-se o consumidor para subsídios as fontes de energia que devem seguir as regras de mercado.
Outro encargo que poderia ser rediscutido é o Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica – Proinfa. Novamente, não faz mais sentido penalizar-se o consumidor para pagar por subsídios a fontes de energia que hoje já são competitivas e devem seguir as regras de mercado.
O sétimo fator que deve ser rediscutido se refere a novas instalações que deverão impactar o setor, como por exemplo, armazenamento de energia e abastecimento de carros elétricos. Ambas não previstas na regulação hoje existente.
Armazenamento de energia é uma consequência do aumento da capacidade instalada de geração de fontes intermitentes. Como detalhamos acima, a intermitência dessas fontes exige complementariedade por outras fontes ou instalação de armazenamento de energia para a devida Adequação do Sistema para atender a carga plenamente. Muitos países estão instalando bancos de baterias para tal função. Seria necessário definir como isso seria feito no Brasil.
Com relação a carros elétricos, o país necessita se preparar para o atendimento dessas novas cargas. O avanço do uso de veículos elétricos tem sido bastante significativo e a maioria dos fabricantes de veículos estão na tendencia de abandonar veículos a base de petróleo passando a fabricar apenas veículos elétricos. A General Motors acaba de informar que a partir de 2035 somente fabricara veículos elétricos. Países como a Noruega a venda de carros elétricos já representa mais de 70%. A Agencia Internacional de Energia (IEA) estima para 2030 um total de venda de 23 milhões no ano, levando o estoque de veículos elétricos no mundo para 130 milhões de veículos. Essa mudança exige que o setor elétrico possua um planejamento adequado de instalação de carregadores para permitir extensão da autonomia dos carros elétricos bem como a forma dessa comercialização. Seria necessário definir como isso seria feito no Brasil.
O oitavo fator que deve ser rediscutido se refere a Pesquisa e Desenvolvimento (P&D). O sistema de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) do setor tem se mostrado ineficiente e uma perda de recursos. Esse sistema poderia ser modificado. Uma alternativa seria o CEPEL ser transformado em uma agencia de pesquisa (um instituto) mantido por participação de TODOS os agentes do setor (geração, transmissão e distribuição) modificando-se a atual obrigação de cada empresa investir em seus programas próprios de P&D fiscalizados pela ANEEL em participação anual das mesmas para o Instituto CEPEL. Esse instituto poderia ser gerido por representantes das empresas e focar os trabalhos de P&D em atividades recomendadas por um painel de especialistas. Algo similar ao feito no Edson Electric Institute dos EUA.
Por Armando Ribeiro De Araujo, é engenheiro eletricista pela Escola de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 1965. Iniciou sua carreira profissional em janeiro desse ano como estagiário na General Electric (GE).