são necessárias leituras tanto para buscar novas leituras, como para julgar o valor das leituras prévias, e, sobretudo, são necessárias leituras de qualidade para chegar a ser um leitor de qualidade, escreve Luis Daniel González
25/03/2022 07:05
”Parece óbvio, mas já se vê que não não é tanto”
As pesquisas sobre hábitos de leitura costumam nos dizer que muitas crianças deixam de ler quando começam a adolescência. Quanto a isto, produziu-se na Espanha um debate sobre se a solução seria dar obras menos difíceis e menos antigas para os alunos lerem. Mas é duvidoso que se faça dos meninos uns bons leitores levando-os ao fácil.
Recentemente, o jornalista Ignacio Zafra comentava alguns dados compilados nos últimos cinco anos pela Federação de Grêmios de Editores da Espanha, segundo os quais a porcentagem de leitores frequentes entre 15 e 18 anos cai, comparada à dos de 10 a 14 anos, de 77% a 53%. A explicação habitual dessa queda aponta para as turbulências próprias da idade e para o uso cada vez maior dos celulares, entre outras razões. Ademais, acrescentava a hipótese do estudo “Jovens e Leitura 2022”, da Fundação Germán Sánchez Ruipérez: a forma como se ensina a literatura nos colégios e institutos afasta os livros dos leitores jovens.
A leitura, um fenômeno qualitativo
Antes de comentar algumas coisas, talvez devêssemos perguntar se as estatísticas, uma ferramenta tão útil para questões quantitativas, trazem luz para realidades que só podemos compreender de forma qualitativa: tanto se soarem negativas – como as que dizem que os leitores são cada vez menos ou leem cada vez menos –, como se parecerem positivas – como as que falam que, durante a pandemia, leu-se mais –, são enganosas porque os motivos dos comportamentos humanos são muito diferentes.
Por exemplo, as estatísticas sobre hábitos de leitura ou de não-leitura nunca levam em conta o clima; somam na mesma coluna leitores de Calderón de la Barca e de Paulo Coelho, livros de Dostoiévski e do último prêmio Planeta; e, naturalmente, não podem levar em conta que um único bom leitor e um único bom livro podem mudar tudo, tanto pessoal como socialmente. Se é confuso uniformizar fatos que são, por sua própria natureza, variados, e se não podemos esperar clareza de umas estatísticas que nunca podem dar as razões, é um erro recorrer a elas para tentar compreender algo tão vago como a leitura de livros muito diferentes por parte de gente muito diferente que, ademais, lê com propósitos muito diferentes.
Em face da suposta crise de leitura na adolescência, cabe propor outra hipótese: e se aqueles leitores crianças não eram verdadeiros leitores? E se o único feito da fase escolar infantil foi dar-lhes produtos de entretenimento que chamamos de livros?
Livros extensos e desafiadores
Entre as experiências que quem foi leitor criança pode trazer, estão a de que dedicamos muitas horas a ler livros extensos e a de que passamos muito tempo absorvidos por novelas de autores como Scott, Dumas, Verne, etc.
Já sei que, a isto, imediatamente haverá quem diga que agora as coisas não são assim – o que para muitos é o certo, ainda que também haja afortunados para os quais não é –, mas o que se trata de notar é isto: que se alguém, quando criança, foi capturado por grandes e emocionantes histórias, nunca se esquece da experiência, e, como ficou claro que algo assim provoca um entusiasmo completamente diferente do que pode causar qualquer outra forma de passar o tempo, sempre terá oportunidade de recuperá-la.
Ademais, quem foi um ávido leitor infantil se lembra de, em algumas ocasiões, ter tropeçado com livros poderosos, que, embora tenham sido difíceis, o desafiaram e o deixaram inquieto, seja por ter se dado conta de que precisava saber mais, ou porque intuiu que continham muito mais do que podia compreender.
Livros valiosos que nos esperam
Outra questão a ser sublinhada é que uma coisa é um educador não impor a leitura de algo que um leitor criança não possa compreender; outra é não buscar a maneira de fazê-lo saber do enorme poder dos grandes livros e esquecer que, sobretudo dentro de uma aula, é preciso figar, e há, sim, quem possa receber o desafio de propostas exigentes. Nesse sentido, não é um drama que um menino chegue à universidade sem ter lido Dom Quixote ou Os Noivos, mas é sim um fracasso educativo que não cresça tendo muito claro que, se gostou de tais livros durante tal tempo é por bons motivos, e que não tenha em seu horizonte a possibilidade e o desejo de dar-lhes uma oportunidade quando chegar a hora.
Aqui é oportuno trazer o comentário de Claudio Magris, de que “a escola não pode ser uma vaca com infinitas tetas das quais fluam todos os tipos de leite passados e vindouros” e aplicá-lo aos livros infanto-juvenis: da escola devemos esperar que promova o melhor, e nesse caso, os melhores livros, não os livros infanto-juvenis em geral, muito menos os recém publicados, e menos ainda os que, supostamente, tratam dos problemas do momento, ou são de autores locais ou amigos.
Em suma, tal como diz Flannery O’Connor, “o professor de letras do secundário cumprirá com sua responsabilidade caso guie o aluno, através da melhor literatura do passado, até a compreensão da melhor escrita do presente; caso ensine literatura, não estudos sociais, nem pequenas lições de democracia, nem os costumes de outras terras. E se o aluno não gostar? Bem, lamentaremos. Infinitamente. Mas não devemos ter em conta o seu gosto: está se formando”.
Livros profundos nas aulas
Nesta ponto vale a pena mencionar um livro da pedagoga norte-americana Karen Bohlin intitulado Educando o caráter através da literatura (Routledge, 2005), no qual se fala qual tipo de livros deve ser proposto aos alunos do secundário e da forma como, com eles, se pode despertar a sua imaginação moral. Indica que, contra a ficção sociológica da moda, é necessário apostar em livros de qualidade literária reconhecida. Faz a comparação bastante gráfica de que, como um treinador de tênis não faz seus alunos praticarem com bolas murchas, e um professor de música não faz seus alunos praticarem com violinos sem cordas, um professor de literatura tem que optar por obras com profundidade.
Diz também que as aulas não devem ser como guias estáticas de literatura – que, por exemplo, se centrem demais na análise de um recurso literário e percam de vista a história em seu conjunto – e devem levar os alunos a saltar para um nível superior de perguntas: exemplifica indicando que não se pode reduzir O sol é para todos a uma lição sobre o racismo, nem resumir Romeu e Julieta com umas frases que condensem a trama; e assinalando a superficialidade de moralizar de forma simplista e tratar Atticus Finch como um herói sem reconhecer suas fraquezas, ou lamentar o amor impossível de Romeu e Julieta sem questionar sua autenticidade.
Bohlin explica bem que as personagens da melhor literatura nos proporcionam umas janelas privilegiadas para a alma humana por meio das quais podemos examinar os fatores internos e externos que acabam pesando para alguém chegar a ser ou não um tipo de pessoa merecedora de admiração e respeito. Aponta que, seja examinando o crescimento moral de Jane Eyre, a heroína de Charlotte Brontë, ou de Ralph e Jack, os protagonistas d’O senhor das moscas, de William Golding, a literatura pode nos ajudar a prestar atenção às experiências e disposições que contribuem para o desenvolvimento moral de cada personagem.
Por outro lado, os leitores adolescentes estão numa etapa vital cheia de ideais, motivo pelo qual se sentem inclinados a ler com interesse aquilo que corresponda à educação do desejo e que possa lhes ensinar a virtude verdadeira da falsa. Avaliar em aulas bem pensadas as escolhas e os erros dos heróis literários abre para eles oportunidades de refletir sobre o valor de suas próprias atuações e metas, e ativa suas imaginações morais.
Livros que nos transformam
Para Bohlin, “os professores de literatura não são diferentes dos treinadores de futebol ou dos professores de música. Seja ensinando esporte ou um instrumento musical, a prática é o que melhora as pessoas”. Um professor de literatura deve fazer seus alunos serem melhores conhecedores da experiência vicária e há de procurar que sejam leitores capazes de distinguir entre as escolhas que levam as personagens de ficção para o florescimento e as que os levam a uma vida que não é plenamente humana.
Assim, retomando o que foi dito no começo, o incômodo com os adolescentes lendo menos não se resolve dando-lhes livros que baixem o nível, senão dando-lhes olhares que lhes tragam verdadeiro enriquecimento interior. Os professores – acrescenta Bohlin – devem se propor a falar em sala de histórias das quais os leitores jovens possam obter inspiração, que os façam mais hábeis para a reflexão ética e lhes ajudem a evitar justificativas e autoenganos, que sejam uma referência para sempre e que façam suas vidas mais ricas.
Leitores de qualidade
Em geral, para poder falar a sério sobre leitura e leitores, teríamos primeiro que nos pôr de acordo quanto ao significado das palavras: nem a leitura de que falamos é uma descarga de dados, senão uma forma de chegar a uma melhor compreensão da realidade; nem um verdadeiro leitor é quem busque livros que proporcionem só diversão, senão quem busca leituras que superem suas expectativas e o façam amadurecer. Ou, nas palavras de Nicolás Gómez Dávila, um verdadeiro leitor é o que não tenta gastar seu tempo limitado “lendo mil livros medíocres que lhe embotam o senso crítico e lesionam sua sensibilidade literária”; o que aprende a ler “sem se sentir vigiado pelas modas literárias” do momento; o que tem claro que “não é entre pequenos que nos sentimos grandes, é na luz dos grandes que nos sentimos crescer”.
Dito isso, conseguir que um leitor adolescente chegue a ter esses planejamentos intelectuais requer clareza quanto aos objetivos do trabalho educativo e assumir que a natureza da leitura inclui que os bons livros ofereçam resistência e requerem esforços que com frequência parecerão infrutíferos, mas que são completamente necessários. Como diz Gregorio Luri em A escola não é um parque de diversões (Ariel, 2020), “é evidente que é necessário conhecimento tanto para buscar conhecimento, como para julgar o valor do conhecimento encontrado”, e que, “sobretudo, é necessário conhecimento de qualidade para produzir conhecimento de qualidade”.
Ou seja, são necessárias leituras tanto para buscar novas leituras, como para julgar o valor das leituras prévias, e, sobretudo, são necessárias leituras de qualidade para chegar a ser um leitor de qualidade. Parece óbvio, mas já se vê que não não é tanto.
Artigo publicado na Gazeta do Povo, 21.03.2022, com permissão da ©2022 ACEPRENSA.
Por Luis Daniel González, Original em espanhol.