Opinião – “sou de direita, me dê dinheiro”

Os direitistas trambiqueiros lembram muito os pastores trambiqueiros de igrejinhas de esquina. Ambos usam da frivolidade de um grande grupo para ganhar dinheiro sem que nenhuma instituição relevante se responsabilize por isso. Escreve Bruna Frascolla.

01/06/2023 08:52

“A direita precisa se unir. Todo o mundo mandando pix para todo o mundo já, porque a esquerda é malvada.”

Porquinho aguarda contribuição de cidadãos de bem, direitistas. Foto: Fabian Blank/Unsplash

Um dia tuitei qualquer coisa contra Lutero e apareceu um internauta aleatório dizendo que eu não podia criticar Lutero, senão dividiria os cristãos. A ironia histórica é deliciosa. Lutero foi justamente o maior divisor da Cristandade desde o Cisma de 1054, que separou Roma de Constantinopla, com católicos no Ocidente e ortodoxos no Oriente. A divisão do Cisma pelo menos foi geográfica e não deu origem a guerras intestinas; a um lisboeta não importava o credo de um moscovita. Na modernidade, porém, Lutero e os príncipes alemães opostos aos Habsburgos lançaram boa parte da Europa Ocidental em guerras civis. Ao cabo, a divisão foi mais linguística que geográfica, com os reinos de línguas latinas permanecendo católicos e os demais, grosso modo, criando igrejas protestantes estatais. A Península Ibérica conseguiu se isolar da confusão. Já a coroa da França, católica, perseguia os súditos protestantes, enquanto que as coroas protestantes perseguiam os súditos católicos.

Essa frase é mais comum em duas versões seculares: “A esquerda precisa se unir!” e “Não vamos dividir a direita!”. A delas tinha uma variante que mostrava bem o contexto em que surgiu: “Esquerda unida, só na cadeia.” Era a época do regime militar, quando o esquerdismo se consolidou como identidade coletiva. Uma plêiade de denominações (leninistas, trotskistas, estalinistas, foquistas, maoistas, contracultura, hippie etc.) brigava entre si e só ficava junta mesmo quando o pessoal ia em cana. Entre a ditadura e a redemocratização, os rótulos políticos, outrora precisos, foram se convertendo na vaga identidade do esquerdista.

Rótulo e identidade são coisas diferentes. Um rótulo político serve para abreviar um pensamento político, ao passo que uma identidade serve para alguém se situar no mundo. Idealmente, um pensamento político deve ser compartilhado por um número amplo; uma identidade, porém, deve ser talhada individualmente, pois comporta vários predicados. Tais predicados fazem uma pessoa ser valorizada ou desvalorizada entre os seus pares.

Seria muito vazio alguém que se enxergasse primariamente como um único predicado ambulante. No entanto, em ambientes sectários ou polarizados, a adesão a uma corrente política é sobrevalorizada como índice suficiente de bondade e correção moral. Desta maneira o rótulo político e a identidade se confundem. Se alguém diz que é um esquerdista, é informação bastante para os seus pares. A pessoa não precisa fazer nada, nem provar seu valor. E assim qualquer nulidade que repita chavões irrefletidos e bajule as pessoas certas conseguia subir na vida investindo na identidade, no predicado único, de esquerdista. Ser de esquerda era garantia de possuir as virtudes necessárias em meios letrados, nos quais o apadrinhamento é muito importante. Mas como os meios letrados alcançaram uma uniformidade de pensamento insuportável, declarar-se de esquerda não era mais grande coisa. O politicamente correto veio bem a calhar, já que serviu para, entre uma montanha de esquerdistas que pensam igual, selecioná-los com base em critérios diferentes do pensamento, tais como cor da pele, sexo e orientação sexual.

Coisa importante a ser notada: quem vive de identidade vive de ser (ou parecer ser) alguma coisa, e não de fazer coisas. Assim, quanto mais o identitarismo se fortaleceu no âmbito acadêmico, mais irrelevante ele se tornou para a sociedade. O bolchevique tentava fazer coisas; o identitário vive numa bolha narcisista de autoafirmação. É escondido durante eleições majoritárias, porque se abrir a boca, tira voto. Mas ele não está nem aí, porque o que quer é afirmar a própria identidade. Se Bolsonaro fosse reeleito, a vida deles seria mais interessante, porque teriam mais ocasião para dar chilique e fazer drama.

Esse uso do esquerdismo como identidade unidimensional não tinha equivalente na direita até o advento do olavismo como movimento virtual. Se na ditadura o mundo das letras (universidade e jornalismo) eram o âmbito da dissidência, no século XXI é a internet. E a dissidência não se dava mais em relação ao anticomunismo, mas sim à social-democracia e ao progressismo. Tornou-se uma briga de velha classe falante contra nova classe falante. Mas com algumas diferenças bem importantes: a esquerda se hospeda em instituições que a sustentam com o erário, ou então são bancadas por ONGs de bilionários. A direita, por outro lado, vive numa anarquia generalizada, e via de regra se financia pedindo pix, vendendo curso, criando start-up ou ganhando por monetização no Youtube.

Creio que a única iniciativa economicamente estável da nova direita tenham sido as editoras de livros. Não à toa, é um ramo que não exige fidelidade ideológica ou político-partidária da clientela. Um leitor de Gertrude Himmelfarb, de Thomas Sowell, de Ortega y Gasset ou de Gustavo Corção dificilmente será um lacrador do PSOL (que não lê nada), mas tampouco se limitará ao eleitorado de Jair Bolsonaro ou do MBL. As editoras da nova direita acessam o mercado geral de letrados, que aliás está muito mal servido com o sequestro de editoras tradicionais por lacradores, com seus “leitores sensíveis”, tabus e mau gosto. As editoras surgidas da nova direita vivem de livros, como as outras, e não da identidade direitista.

Assim, podemos dizer que a constituição da nova direita favorece a multiplicação de trambiqueiros e charlatães, sobretudo virtuais. A melhor prova disso na certa foram os youtubers que, desde o segundo turno até o 8 de janeiro, ficavam anunciando golpe militar dentro de 72 horas. Muita gente via, eles ganhavam engajamento, o Youtube remunerava e – por que não? – ganhavam pix, já que eram boas almas direitistas.

Os direitistas trambiqueiros lembram muito os pastores trambiqueiros de igrejinhas de esquina. Ambos usam da frivolidade de um grande grupo para ganhar dinheiro sem que nenhuma instituição relevante se responsabilize por isso. Se um petista enganou um esquerdista, ele pode ir reclamar no diretório do PT. Mas se um youtuber avulso enganou um direitista, ele desaparece como o pastor obscuro que foi preso vendendo droga.

Naturalmente há padres ruins na Igreja Católica, mas há responsabilidade: todo malfeito do padre macula a Igreja, e ela é chamada a responder. Alegando insatisfação com a degeneração moral dessa instituição, Lutero e seguidores puderam criar uma nova instituição. Mas depois veio outra, e mais outra, e mais outra, de modo que, em potencial, há tantas igrejas quantos grãos de areia na praia. Abriram-se as portas para cada um dizer: “Agora vou me desligar dessa instituição desgraçada e criar uma nova, pela qual eu respondo”. E assim sucessivamente, de modo que as igrejas, cada vez mais miudinhas, equivalessem a responsabilidade nenhuma. Esse é o caso das igrejas evangélicas no Brasil e nos EUA, onde elas nunca foram religiões estatais. O Brasil por ter sido um país com religião católica oficial, e os EUA por terem sido fundados por protestantes de seitas variadas e, assim, nunca ter tido uma religião oficial.

Resulta que a turba de evangélicos e de direitistas brasileiros guardam uma semelhança política pertinente, que é o fato de compartilharem uma identidade coletiva sem responsabilidade nem institucionalidade. Fica essa confusão generalizada, onde todo o mundo diz representar todo o mundo, e que os rivais são trambiqueiros a serem extintos. Se um pastor ganha um fiel, outro perde. O mesmo se dá com as facções da direita: vide a briga de foice entre bolsonaristas, MBL e lavajatistas, iniciada quando o bolsonarismo era governo e continuada até agora. Inclusive, como a direita brasileira vive de mercado, o correligionário está fadado a se tornar concorrente.

O paralelo vai mais longe. O pastor trambiqueiro pede dinheiro e mais dinheiro a fim de resolver problemas pontuais, tais como possessão demoníaca, conflitos familiares e até falta de dinheiro. O certo é o pagamento, e não a solução de quaisquer desses problemas. Quanto mais aparições demoníacas, melhor para o negócio. Quanto maior o sucesso da esquerda, melhor para a campanha eleitoral do candidato de direita. E aqui não deixa de ser paradoxal, já que, em tese, políticos devem ser eleitos para resolver problemas públicos. Ora, se vivemos num inferno comunista, de que adianta votar num deputado? Se a liberdade de expressão foi para o saco com ajuda das Big Techs, qual o sentido de apostar em youtubers para o que quer que seja? É como se o fracasso fosse sucesso, porque o que se espera é mais o espetáculo de um martírio que soluções reais para problemas palpáveis.

Aqui temos uma espécie de legitimação pela perseguição promovida por autoridades. Não importa se um jornalista é péssimo e não fez nada de relevante; se foi perseguido pela autoridade, será considerado um grande homem. Esse ethos é bem protestante. Uma vez que os seguidores de Lutero se fragmentaram em mil pedaços e não puderam se mostrar moralmente superiores à Igreja Católica (note-se que as pautas antiaborto e antirracismo eram católicas e obscurantistas antes de serem abraçadas pela direita evangélica), resta usar a Inquisição para criar uma identidade protestante oprimida e anticatólica. “Somos bons porque somos mártires, somos mártires porque eles são maus”. Aí define-se mais o eles do que o nós. E tudo isso lembra, outra vez, a dinâmica identitária da esquerda e da direita: somos bons porque somos mártires da ditadura militar/de Xandão, somos mártires porque eles são maus”. E isso é falso. Muita gente ruim foi barbaramente perseguida ao longo da história da humanidade, comunistas inclusive. No fundo, o martírio pela perseguição acaba por demonizar a figura da autoridade em si mesma. E quando o ex-oprimido vira autoridade, não quer se enxergar como autoridade abusiva em hipótese alguma, pois abusivo é só o outro.

Há mais outro vício que a direita e a esquerda compartilham com o protestantismo. Na Igreja Católica, uns poucos têm que ser instruídos e versados em teologia. O porteiro e o lavrador podem ser analfabetos, pois confiam no padre que estudou por eles e os aconselha. Já o protestantismo parte do pressuposto pouco realista de que cada porteiro e lavrador tem que ler a Bíblia e ser versado o suficiente em teologia para concluir que o pastor está correto em sua interpretação particular da Palavra – concordando, por exemplo, com a doutrina da predestinação. Ora, é muito difícil uma comunidade inteira, dotada de trabalhadores braçais e pouco escolarizados, apreender teses opostas e manter em mente o significado da doutrina que ele apoia. Mais fácil dizer “sou calvinista”, criando uma identidade ligada a um homem particular. E, com a retórica maniqueísta do martírio, está claro que nós somos bons porque somos calvinistas, vocês são maus porque são opressores. Portanto, um único predicado capaz de tornar alguém bom dentro de um nicho – como esquerdista ou direitista.

Unir a direita (ou a esquerda) não deveria ser prioridade de ninguém, pois não moramos no Direitistão nem no Esquerdistão, e sim no Brasil, com suas complexidades e conflitos. Essas são identidades que só têm sentido dentro de um país dividido e radicalizado, estado que não é nada desejável em si mesmo. O foco de todo brasileiro de mente sadia deveria ser discernir quem está certo e quem está errado em leituras e propostas, a fim de buscar soluções para os problemas do país. Em vez de dizer “ele é de direita”, deveríamos nos preocupar em dizer “ele tem razão”. É narcisismo achar que a autoafirmação individual como “de direita” (o que quer que isso signifique) é um fim importante para o público. É narcisismo, e é punido com golpe de trambiqueiro.

 

 

 

 

 

Por Bruna Frascolla é doutora em filosofia pela UFBa e autora de “As ideias e o terror” (República AF, 2020). Colabora com a Gazeta do Povo desde 2020.

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