Opinião – O Estado de Direito entre as leis e as fantasias dos juízes

Isso leva à conclusão do quão grande é o risco de se confiar única e exclusivamente ao Judiciário a tarefa de garantir e preservar o Estado de Direito. Escreve Fernando Ferreira Jr..

12/09/2023 07:37

“Um Judiciário contido e institucionalmente modesto, (…) é condição indispensável para que haja um Estado de Direito digno desse nome no Brasil”

Fachada do STF/foto: Agência Brasil

Muito se fala atualmente em Estado de Direito. Fala-se em defendê-lo, em protegê-lo. Fala-se, inclusive, que esse mesmo Estado de Direito estaria sendo atacado por forças sinistras que gostariam de ver o seu fim.

Por mais paradoxal que seja, hoje a maior ameaça ao Estado de Direito não vem de fora, mas de dentro. Na verdade, é o Poder Judiciário, encarregado de defender a integridade do sistema jurídico e, por tabela, o Estado de Direito, que representa o maior perigo. Quando juízes e tribunais, sob o pretexto de interpretar os textos legais que serão aplicados, fazem pouco caso do sentido direto e natural das palavras do legislador, chegando mesmo ao ponto de invertê-lo por completo, um dos pilares centrais do Estado de Direito, que é a integridade do sistema jurídico, é colocado em xeque. Se o que está escrito nas leis não vale, tudo passando a depender do arbítrio de juízes e tribunais, o sistema jurídico colapsa. Tudo vira uma grande charada macabra.

O estado de direito e o governo das leis

Talvez a ideia mais direta e claramente associada à noção de Estado de Direito seja a de que se trata de um regime de leis, e não de homens. Dito de outro modo, no Estado de Direito o que prevalece, e o que rege as condutas das pessoas em sociedade, é a lei posta, e não a vontade idiossincrática do governante, dos juízes ou de qualquer outra autoridade do momento. A ideia não é nova, muito pelo contrário: é antiga e bastante influente ainda.

Mas isso não é suficiente. O governo de leis, para sê-lo verdadeiramente, tem de ser acompanhado de algumas outras características. São algumas condições que, observadas, permitem a existência real de um sistema jurídico apto a guiar e orientar pedagogicamente as pessoas e que, por conta disso mesmo, merecerá a lealdade delas.

Essas notas materializam aquilo que, segundo o pensamento do jurista norte-americano Lon Fuller, se pode chamar de “moralidade interna do direito”, ou seja, o conjunto mínimo de condições necessárias para a criação e manutenção de um governo de leis e, por conseguinte, de um Estado de Direito.

Dessas notas, provavelmente a mais importante e mais difícil de ser cumprida é a da congruência entre a ação estatal e o estipulado pelos textos legais. Um Estado de Direito que se pretenda como tal realmente, não se satisfazendo em ser um mero rótulo ou slogan na boca de políticos e jornalistas, tem de garantir, na medida do possível, que haja uma harmonia real entre a ação das autoridades públicas, quem quer que sejam, e aquilo que os textos legais estatuem.

O risco da ação do Judiciário para a moralidade interna do direito

Modernamente, a tarefa de garantir essa harmonia entre a ação estatal e o estipulado pelas leis e decretos existentes está sob responsabilidade do Poder Judiciário. Na maior parte das nações modernas, em especial no Ocidente, são os juízes e tribunais que, ao aplicar as leis e o direito aos conflitos e controvérsias concretas, buscam assegurar o entrosamento entre a ação das autoridades e os ditames dos textos legislativos.

Há uma lógica por trás dessa ideia. Pensa-se, com uma boa dose de razão, que os juízes são especialistas na matéria. São profissionais academicamente treinados e preparados para lidar com as questões próprias do direito e, mais especificamente, para lidar com os dilemas e dificuldades da aplicação da lei. Além disso, e talvez até mais importante, essa atribuição institucional dada ao Poder Judiciário visa proteger o sistema jurídico das interferências mesquinhas e míopes da política partidária e ideológica. Juízes, em tese, não participam das disputas político-ideológicas do dia a dia e, portanto, não estão contaminados pelas paixões suscitadas pela disputa pelo poder, muito menos por aquilo que Carl Schmitt chamou de a lógica da política: a lógica do amigo-inimigo. Ao contrário, a lógica dos juízes e dos tribunais, segundo a tradição clássica do direito, é a lógica do justo e do injusto.

No caso brasileiro, a Constituição transferiu vasto poder aos juízes, em especial aos órgãos de cúpula do Poder Judiciário. O texto da Constituição chega a dizer, por exemplo, ao se referir ao Supremo Tribunal Federal, que a ele compete “a guarda da Constituição”. Faz sentido. Se o propósito é preservar o sistema jurídico das investidas da política, nada mais natural que colocá-lo sob a proteção do órgão que, por definição, não é político: o Poder Judiciário e, mais especificamente, o STF.

Em tese, a situação é essa. Na prática, e em especial no Brasil dos nossos dias, o quadro é bem diferente. O que não se anteviu — ou, numa interpretação mais cínica, o que foi colocado dentro do sistema como uma bomba de efeito retardado — foi o risco da politização do próprio órgão encarregado de proteger o sistema jurídico das vicissitudes da política partidária e ideológica. É dizer: o próprio responsável pela preservação da moralidade do direito torna-se, ele mesmo, o autor da degradação do sistema de leis e normas. Ou seja, pode-se dar o caso de os próprios juízes e tribunais colaborarem decisivamente, com suas decisões e atitudes, para a degeneração do sistema jurídico, de modo que este não possa mais ser tido como um guia seguro da conduta das pessoas, e muito menos ainda poder exigir dessas mesmas pessoas algum tipo de lealdade sincera. É a corrupção da própria ideia de Estado de Direito.

A degradação da moralidade do direito pela interpretação das leis

Esse processo de degradação pelas mãos dos juízes e tribunais ocorre fundamentalmente no processo de aplicação das leis às questões e casos concretos. É na interpretação dos textos legais que juízes e tribunais podem materializar o risco da degeneração da moralidade do direito.

Nessa seara em específico, o que se espera dos juízes e dos tribunais? Espera-se que apliquem as leis e decretos de modo sério, sincero e consciencioso, atendo-se ao disposto nos textos, sem piruetas ou malabarismos interpretativos, salvo naqueles casos em que esse respeito à literalidade da regra descambe em decisões manifestamente absurdas ou frontalmente contrárias aos princípios gerais tradicionais do direito e da justiça. A integridade da moralidade interna do direito, bem como a congruência entre a ação das autoridades e o determinado pelas leis, depende que juízes e tribunais “apliquem a lei estatuída não de acordo com sua fantasia ou com uma literalidade ranzinza, mas de acordo com os princípios de interpretação apropriados à sua posição em toda ordem jurídica”.

Mas esse risco da interpretação equivocada ou mirabolante pode ser prevenido. Basta que existam tribunais superiores, órgãos de cúpula do Poder Judiciário, que se encarreguem de corrigir os erros e mal-entendidos das instâncias inferiores, zelando para que a legalidade, isto é, para que as condições mínimas da moralidade do direito sejam mantidas em todo o sistema.

O problema se repete, no entanto: os próprios tribunais superiores eles mesmos se tornam fatores decisivos e inescapáveis de corrupção e degradação do sistema jurídico, solapando as bases da legalidade e tornando impossível a existência da moralidade interna do direito. É que o tribunal de cúpula do sistema pode se ver às voltas com as mesmas influências e as mesmas limitações que afligem os juízes como um todo: “todas as influências que podem produzir uma falta de congruência entre a ação jurisdicional e a lei estatuída podem, quando o próprio tribunal edita a lei, produzir desvios igualmente prejudiciais de outros princípios da legalidade: uma falha em articular normas gerais razoavelmente claras e uma inconstância na decisão, o que se manifesta em decisões contraditórias, mudanças frequentes de direção e mudanças retrospectivas na lei”.

Não é preciso dizer que esse é o caso em que se encontra o nosso Poder Judiciário, em especial os tribunais superiores, STF incluso. O que se dá atualmente é um profundo estado de degradação da moralidade do direito no Brasil. As condições mínimas de legalidade, que deveriam ser preservadas pela atuação dos juízes e tribunais brasileiros, em especial pela dos órgãos superiores do Poder Judiciário, são solapadas dia após dia, notadamente por meio da interpretação dos textos legais e sua aplicação a casos concretos.

Dois exemplos de degradação da legalidade pelo Judiciário

Para ilustrar o que digo, vou trazer à lembrança do leitor dois casos. Um mais antigo, decidido pelo STF. Outro, recente, decidido pelo Tribunal Superior Eleitoral – TSE.

Começo pelo exemplo mais antigo. Em agosto de 2020, o Partido Trabalhista Brasileiro – PTB acionou o STF para impedir que os então Presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre, respectivamente, pudessem concorrer à reeleição dos cargos que ocupavam naquele momento. Não precisamos entrar nos detalhes e nas minúcias do caso. Para o que importa aqui, cabe apenas indicar que a base da ação do PTB era o parágrafo 4º, do artigo 57 da Constituição: cada uma das Casas reunir-se-á em sessões preparatórias, a partir de 1º de fevereiro, no primeiro ano da legislatura, para a posse de seus membros e eleição das respectivas Mesas, para mandato de 2 (dois) anos, vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente.

O texto não poderia ser mais claro: “vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição subsequente”. Ou seja, a Constituição proíbe a recondução para a eleição subsequente. É o sentido do verbo vedar: aquilo que está vedado, está proibido, está barrado, está impedido. Em suma, não pode.

Mas a clareza e simplicidade do texto, aliado ao fato de que sua aplicação na hipótese não levaria a nenhum resultado absurdo ou escabroso, não foi suficiente para dissuadir o relator da ação, o ministro Gilmar Mendes, de se aventurar em fantasias interpretativas, para usarmos a expressão de Lon Fuller. O fato é que o ministro, após um longo voto de mais de setenta páginas, chegou a uma conclusão bem distante da simplicidade do texto. Para o ministro Gilmar, o “vedada” do texto não significava propriamente uma proibição, mas uma autorização, pelo menos para aquele momento e naquela circunstância específica.

Apenas para estabelecermos uma superfície de contraste, vejamos o que disse no mesmo julgamento o Ministro Marco Aurélio:

Indaga-se: o § 4º do artigo 57 da Lei Maior enseja interpretações diversas? Não. É categórico. A parte final veda, de forma peremptória, sem o estabelecimento de qualquer distinção, sem, portanto, albergar – o que seria um drible – a recondução para o mesmo cargo na eleição imediata.

É como o Ministro falou: é categórico. Não há margem para criatividades semânticas, interpretações ousadas ou dribles. O texto é simples e singelo: vedado é vedado.

A Corte terminou por rejeitar a opinião do Ministro Gilmar, mas o surpreendente é que o caso foi decidido por 6 a 5. Ou seja, a despeito da clareza e singeleza do texto, a tese do Ministro Gilmar de que as coisas não são bem assim e que uma proibição não é bem uma proibição obteve a adesão de outros quatro ministros, de modo que o julgamento que fez prevalecer o estatuído no texto foi decidido por apenas 1 voto.

É claro que na ocasião havia muitas questões políticas em jogo. A reeleição dos Presidentes da Câmara e do Senado era vista como uma derrota política do então Presidente Jair Bolsonaro. Mas isso não atenua a situação, pelo contrário. A contaminação do Poder Judiciário pela lógica do amigo-inimigo produz esse tipo de distorção na aplicação e interpretação das leis e, por consequência, corrompe a integridade da moralidade interna do direito. Os juízes e tribunais que, encarregados da defesa da legalidade, deveriam interpretar os textos do modo mais natural e direto possíveis, sem fantasias e aventuras hermenêuticas, mas também sem o apego a uma literalidade estúpida, acabam por trair sua missão, comprometendo o Estado de Direito que dizem defender.

Mas deixemos o que se passou em 2020 para trás, e nos concentremos neste ano de 2023. De lá para cá, como o próximo exemplo deixará claro, as coisas pioraram.

O exemplo é do TSE. O caso foi decidido há pouco. O deputado federal Deltan Dallagnol, até alguns anos atrás uma das estrelas da Operação Lava Jato, teve o seu mandato cassado em decisão unânime dos ministros daquele Tribunal. Qual o motivo? De acordo com o voto do relator, Ministro Benedito Gonçalves, o deputado infringiu a Lei da Ficha Limpa, pois teria pedido demissão do cargo que ocupava no Ministério Público federal para evitar a instauração de processos administrativos disciplinares. Disse o Ministro:

Embora via de regra essa causa de inelegibilidade pressuponha a existência de processo administrativo disciplinar que possa acarretar aposentadoria compulsória ou perda do cargo, aduz-se que o recorrido antecipou seu pedido de exoneração de forma proposital exatamente para evitar que os outros 15 procedimentos diversos que tramitavam contra ele fossem convertidos ou dessem origem aos PADs.

O próprio relator admite que a regra da Lei da Ficha Limpa que foi aplicada para cassar o mandato do deputado “pressupõe a existência de processo administrativo disciplinar”. Pressupor é supor antecipadamente, é presumir ou conjecturar que algo exista, por exemplo. No caso da Lei Ficha Limpa, a regra supõe que existam processos administrativos disciplinares em curso para que o magistrado ou promotor venha a ser impedido de concorrer no pleito eleitoral ou, caso concorra, perca o eventual mandato, como aconteceu com Dallagnol. É o que diz a regra: a hipótese de inelegibilidade para membros do Judiciário e do Ministério Público é o “pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar”. Sem a presença desse fato, que pode ser facilmente comprovado, não há hipótese de inelegibilidade.

Até aí não há maiores problemas. O problema surge quando o Ministro Benedito conclui, sem qualquer referência ao texto legal, que a pendência não é propriamente uma pendência, ou seja, que o processo administrativo disciplinar, ao invés de estar em curso no momento da exoneração ou aposentadoria, poderia não existir, conquanto que pudesse ter existido. É o pendente que não é pendente, o em curso que não é em curso. O processo administrativo disciplinar pressuposto pelo texto legal, segundo a interpretação do TSE, pode existir ou não existir, bastando que, nesse segundo caso, haja uma chance de que pudesse ter existido, ainda que não tenha existido realmente.

Juízes e tribunais não devem interpretar as leis: a lição da tradição clássica

São apenas dois exemplos, mas eles mostram de forma bem clara, quero crer, o efeito profundamente deletério que a interpretação das leis pelos juízes e tribunais pode trazer para a moralidade interna do direito e, consequentemente, para o próprio Estado de Direito.

Esse risco não é desconhecido da tradição clássica do direito. Muito pelo contrário, sempre existiu uma aguda consciência dos problemas inerentes à interpretação dos textos legais e, mais do que isso, das sérias implicações decorrentes da concessão de um poder excessivo a juízes e tribunais.

A esse respeito, S. Tomás de Aquino vai direto ao ponto e, no Tratado da Lei, pergunta se foi útil que leis tenham sido impostas aos homens. A pergunta é pertinente. E a resposta, ao menos num primeiro exame, é um claro não. Afinal de contas, por que os juízes deveriam se ater aos textos legais se o que importa, em última análise, é formular a melhor decisão possível no caso concreto? Seria contraproducente, e até indevido, que o julgador, quem quer que fosse ele, ficasse de mãos amarradas diante de um caso em virtude de uma lei qualquer. Se o que se almeja é a decisão equitativa, adequada e justa, ficar preso a um texto legal é um estorvo desnecessário.

Além disso, essa submissão aos textos é pouco eficiente: se se trata de obter decisões adequadas às circunstâncias do caso concreto, é melhor que juízes e tribunais possam decidir casuisticamente sem as amarras dos textos. Se o objetivo, por exemplo, for o de combater “atos antidemocráticos”, “discursos de ódio” e botar opositores políticos na cadeia, a necessidade de se observar a letra da lei é uma pedra no sapato, é um formalismo enervante: atrapalha e limita a efetividade da atuação das autoridades judiciárias. Bem mais prático e eficiente é decidir casuisticamente segundo as melhores convicções dos juízes e bola para frente. Para quê perder tempo com minúcias de textos legais?

No entanto, o mesmo Tomás de Aquino, um pouco mais à frente no seu texto, mostra que a realidade não é bem assim. Diz ele, apoiando-se num fragmento da Retórica de Aristóteles, que “é melhor que todas as coisas se ordenem pela lei do que deixar ao arbítrio dos juízes”. Sim, é melhor que juízes e tribunais se atenham ao sentido direto e natural dos textos legais no julgamento dos casos, ao invés de decidirem casuisticamente.

Mas por que seria melhor? São três as razões, segundo Tomás.

A primeira é a de que não é certo, na verdade é muitíssimo pouco provável, que tenhamos um número tão grande assim de juízes sensíveis, e com o tirocínio necessário, para decidir os casos com um mínimo de justiça e bom-senso. É uma questão de cautela: a lei pode ser ruim, é verdade, mas ela é uma só; os juízes são milhares, espalhados por um vasto território, emitindo decisões todos os dias em dezenas ou centenas de milhares de processos. É mais fácil lidar com um texto legal ruim que, eventualmente, pode ser corrigido, reformado ou emendado, do que com um número infinito de decisões judiciais sem pé nem cabeça, cada qual sendo o resultado das idiossincrasias, perversões e opiniões pessoais do respectivo julgador.

A segunda razão é uma de natureza temporal.

Juízes e tribunais devem decidir constrangidos por uma limitação de tempo. Deixando de lado as situações patológicas de processos que se arrastam por décadas — o que pouco tem a ver com o que está sendo discutido aqui —, em geral as decisões de juízes e tribunais devem ser proferidas num espaço de tempo relativamente curto se comparado ao tempo das deliberações parlamentares. Um projeto de lei, por exemplo, pode ser discutido por anos a fio antes que seja finalmente votado e aprovado. O nosso Código Civil, por exemplo, ficou em discussão no Congresso Nacional durante 25 anos. A nova Lei de Licitações e Contratações Públicas, por exemplo, foi discutida durante 8 anos.

Nada disso é garantia certa de que as leis sejam sempre superiores a uma decisão judicial de um determinado juiz ou tribunal. É possível imaginar que um juiz seja capaz de chegar a uma decisão equitativa e razoável num curto espaço de tempo, enquanto um texto legal, debatido e examinado ao longo de muitos anos, seja uma calamidade. Mas a exceção só faz confirmar a regra. Apesar de possível, não parece ser provável: o normal é que, do ponto de vista cognitivo, uma deliberação mais demorada e, além disso, que se beneficiou do acesso a outros exemplos, casos, situações, estudos e contextos, em suma, que se beneficiou de um mais largo horizonte de conhecimentos e experiências, seja mais adequada do que uma decisão judicial tomada praticamente no calor dos acontecimentos. Como diz S. Tomás: “mais facilmente um homem pode ver o que é reto a partir da consideração de muitos casos, do que a partir de um fato único”.

Relacionado a isso há também mais uma razão, a terceira, para a superioridade do respeito aos textos legais em comparação à liberdade interpretativa de juízes e tribunais. É que os textos legais são pensados tendo em vista o futuro e a generalidade dos casos. Não existe lei particular: ela não trata de uma pessoa em específico, nem de um caso em específico. O objeto próprio da lei são situações típicas, abstratas e universais, que podem vir a ocorrer no futuro.

Não é o que acontece com as decisões judiciais.

As decisões dos juízes sempre têm em vista uma situação em particular, um caso concreto que é veiculado num processo. Daí que esse juízo, além da circunstância da limitação temporal — o juiz tem de decidir no calor dos acontecimentos —, também sofra com as limitações inerentes a uma decisão que é dada a partir de um caso específico.

Mais uma vez: não há garantia certa de nada, mas pode-se supor, com relativa segurança, que o legislador, ao trabalhar sob o signo da universalidade e generalidade, está menos sujeito às limitações que afetam o trabalho de juízes e tribunais que tem de decidir a partir de situações concretas. Tomás de Aquino aponta essas limitações com a costumeira clarividência: “os homens que presidem aos julgamentos julgam sobre coisas presentes, em relação às quais são afetados por amor, por ódio ou por alguma cobiça, e assim se deprava o julgamento”.

Os insights da tradição clássica a respeito das limitações da atuação de juízes e tribunais no julgamento de situações particulares foram confirmados pela moderna ciência comportamental. O fato de se ter um caso específico para resolver, faz com que os juízes sofram, dentre outros, de um fenômeno chamado de “ancoragem”. Resumidamente, a ancoragem é a ideia de que as características de um primeiro caso sob julgamento irão influenciar excessivamente a estimativa das características dos casos subsequentes. Isso quer dizer que, ao tomar uma decisão qualquer, juízes e tribunais se deixam levar, em grande medida, pela impressão de que os casos subsequentes terão mais ou menos os mesmos traços daquele que está em apreciação no momento. Há uma distorção do campo de visão dos julgadores, de modo que passam a considerar as peculiaridades do caso como representativas e definidoras de um gênero inteiro de casos: “mesmo que o presente caso não seja representativo, portanto, seu efeito de ancoragem pode levar juízes e outros decisores, incluindo os cuidadosos que estão cientes da possibilidade de viés por disponibilidade e até mesmo cientes da natureza dos efeitos de ancoragem, a imaginar um campo que é mais semelhante ao caso âncora do que a realidade subjacente justificaria”.

Outro fenômeno a impactar a atuação de juízes e tribunais é o da pressão por decidir o caso em mãos. A situação aqui é que o julgador se vê compelido a formular a melhor regra possível para solucionar especificamente a questão em julgamento, em detrimento de uma solução que pudesse dar conta adequadamente de possíveis casos similares subsequentes. É uma miopia cognitiva: a necessidade de julgar o caso presente, faz com que juízes e tribunais não se deem conta de que a decisão deveria poder ser estendida para outras situações semelhantes futuras. Uma exigência da justiça é que as decisões almejem uma certa universalidade, que, de algum modo, tendam para o futuro. Entretanto, o caso concreto acaba por exercer uma força de atração irresistível sobre o julgador: o que importa é decidir a questão imediata, pouca atenção sendo dada aos casos análogos que virão no futuro, e que poderiam ser abrangidos por um outro tipo de decisão: “o poder do caso particular é um poder com emanações capazes de distorcer, de modo que os tribunais costumam usar a regra de decisão que produziria mais diretamente o resultado correto no caso particular como a regra anunciada para casos futuros, casos em que o resultado preferido pode vir a ser muito diferente”.

Um Judiciário contido, modesto e respeitador das leis é condição indispensável para o Estado de Direito

De tudo o que foi dito, uma coisa é clara e certa: os juízes, os tribunais superiores, enfim, o Poder Judiciário não pode tratar a lei como um mero instrumento de seus caprichos e idiossincrasias. Como diz Michel Villey: não podemos “entregar o direito à fantasia de cada juiz”.

A função própria dos juízes e dos tribunais é a de aplicar as leis da maneira mais direta e simples possível, atendo-se à linguagem natural dos textos promulgados pelo legislador.

É certo que não se trata de tarefa fácil e banal. As leis, mesmo as bem-feitas e concebidas, têm limites, dado que as circunstâncias das questões levadas ao conhecimento dos juízes são infinitas. Como a tradição clássica do direito não nos deixa esquecer, a capacidade de previsão do legislador é limitada, mas as vicissitudes dos negócios humanos são praticamente sem fim. Não há como os textos disciplinarem todas as situações e imaginarem todas as soluções possíveis.

Além disso, há também inúmeras ocasiões em que o trabalho do legislador pode ser viciado por fenômenos em tudo semelhantes àqueles que viciam a atuação dos juízes. Se é certo que os parlamentares não têm de lidar com situações concretas que precisam ser prontamente resolvidas, isso não quer dizer que não possam se deixar levar por “amor, ódio ou cobiça”. Tanto quanto os julgamentos dos tribunais, as leis podem ser “depravadas”.

É nesse tipo de situação que juízes e tribunais intervêm, de forma legítima, para encontrar soluções que vão além do texto da lei, mas não para fantasiar ou impor seus próprios preconceitos ou preferências político-ideológicas. O que ocorre nesse tipo de situação — os chamados casos difíceis — é que os juízes têm de buscar nos princípios gerais do direito, isto é, no patrimônio clássicodo ius commune, o vetor a indicar a direção geral a ser seguida para se encontrar uma decisão equitativa e compatível com o bem comum.

Infelizmente não é o que tem ocorrido no Brasil nos últimos tempos. Aqui, até onde se pode ver, o direito deixou de ser, tal como na definição clássica, “a arte do bom e do justo”, para se transformar na arte das conveniências políticas do momento e na do atendimento a interesses particulares, sejam estes o de partidos políticos, de ONGs multimilionárias, de grandes grupos empresariais ou mesmo de organizações criminosas.

Tudo isso leva à conclusão do quão grande é o risco de se confiar única e exclusivamente ao Judiciário a tarefa de garantir e preservar o Estado de Direito. O caso brasileiro é exemplar do fracasso institucional de juízes e tribunais como guardiões das condições mínimas de legalidade necessárias para a existência de um sistema jurídico legítimo e funcional, merecedor do respeito e apreço das pessoas, bem como é também prova cabal dos danos que a ideologia do constitucionalismo causa à democracia.

Um Judiciário contido e institucionalmente modesto, que se limite a aplicar os textos legais de forma direta e simples, respeitando o sentido natural das palavras, sem piruetas interpretativas, sem pretender ser o guia iluminado da nação e sem pretender impor agendas político-ideológicas, é condição indispensável para que haja um Estado de Direito digno desse nome no Brasil.

 

 

 

 

 

Por Fernando Ferreira Jr. é advogado e mestre em Direito pela Fundação Getúlio Vargas.

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