Há a necessidade de proteger a dignidade e a honra dos indivíduos contra acusações infundadas e difamatórias. Escreve João Valença.
17/06/2024 12:37
“o país observa atentamente e aguarda a decisão final do STF sobre esse assunto delicado”
O Supremo Tribunal Federal (STF) entrou em um debate crucial sobre os limites da liberdade de expressão no contexto político que deve estar presente nas eleições desse ano. Afinal, é permitido rotular adversários como “nazista” ou “fascista”? Até que ponto os parlamentares podem usar termos controversos sem violar a honra individual com base na imunidade parlamentar?
Os ministros do STF mergulharam nesse embate durante a análise de uma queixa-crime apresentada pelo deputado federal Gustavo Gayer (PL-GO) contra o também deputado José Nelto (PP-GO). Nelto, em uma entrevista a um podcast no ano passado, não poupou adjetivos ao se referir ao seu colega de Câmara, chamando-o de “nazista”, “fascista” e “idiota”, além de acusá-lo de agredir uma enfermeira.
O ponto central da discussão gira em torno da interpretação desses termos. O ministro Flávio Dino foi um dos primeiros a manifestar sua posição, argumentando que chamar alguém de “nazista” ou “fascista” faz parte do debate político e não deve ser considerado uma ofensa pessoal passível de punição legal. Ele destacou que esses termos são parte de uma corrente política reconhecida internacionalmente e não devem ser interpretados como ataques diretos à honra individual.
Entretanto, a relatora do caso, ministra Cármen Lúcia, adotou uma visão diferente. Ela votou para receber a queixa pelos crimes de calúnia e injúria, enfatizando que as acusações feitas por Nelto são sérias o suficiente para justificar uma investigação mais aprofundada. Para Cármen, termos como “nazista” têm uma carga histórica significativa, evocando os horrores da Segunda Guerra Mundial e representando não apenas uma questão de opinião política, mas sim uma imputação grave.
A divergência de opiniões entre os ministros reflete a complexidade do assunto em questão. Por um lado, há a preocupação em preservar a liberdade de expressão e o direito ao debate político vigoroso, sem o risco de censura ou punição indevida. Por outro lado, há a necessidade de proteger a dignidade e a honra dos indivíduos contra acusações infundadas e difamatórias.
O ministro Flávio Dino afirmou que rotular alguém de “nazista”, “fascista” ou outras classificações políticas não deve ser equiparado a acusações de crimes específicos, como agressão ou homicídio. Ele argumenta que esses termos fazem parte do vocabulário político há décadas e são usados para descrever ideologias e posicionamentos políticos, não para denegrir a reputação pessoal de alguém.
No entanto, para a ministra Cármen Lúcia e outros ministros que compartilham de sua visão, o contexto histórico e emocionalmente carregado desses termos os torna mais do que simples rótulos políticos. Eles representam ideologias que foram responsáveis por atrocidades inimagináveis durante a Segunda Guerra Mundial e, como tal, não devem ser usados levianamente ou como ferramentas de difamação.
Sabemos que a legislação brasileira aborda os crimes contra a honra no Código Penal, nos artigos 138 a 145. Esses crimes são divididos em três categorias principais: calúnia, difamação e injúria. E, para a configuração desses crimes, é necessário que haja dolo, ou seja, a intenção de ofender a honra alheia. Mas a legislação prevê algumas exceções como a imunidade parlamentar.
A importância desse debate é que a decisão do STF pode ter repercussões significativas não apenas no âmbito jurídico, mas também no cenário político nacional e nas eleições de outubro. Uma eventual permissão para o uso indiscriminado de termos como “nazista” ou “fascista” em debates políticos poderia acirrar ainda mais os ânimos e polarizar o ambiente político, tornando o diálogo e o consenso ainda mais difíceis de alcançar.
Diante desse impasse, o ministro Alexandre de Moraes pediu vista do processo, suspendendo temporariamente o julgamento e fornecendo mais tempo para uma análise cuidadosa dos fatos e argumentos apresentados. No entanto, fica claro que essa questão não será resolvida facilmente e continuará a gerar debates acalorados tanto nos tribunais quanto na esfera pública.
Enquanto isso, o país observa atentamente e aguarda a decisão final do STF sobre esse assunto delicado. O entendimento do Supremo tem o potencial de moldar não apenas o futuro do debate político, mas também os limites da liberdade de expressão e da responsabilidade individual em uma sociedade democrática – e o nível do debate nas eleições de 2024.
Por João Valença é advogado do escritório VLV Advogados, especialista em Direito Eleitoral.