Esses senhores togados estão convencidos de que agem para proteger a democracia. Ou perderam mesmo o pudor e não ligam mais para as aparências. Escreve Rodrigo Constantino.
24/06/2024 12:08
“Perdeu, mané, não amola”
O primeiro deles caminha lentamente, com sua longa capa preta nas costas, e quando se aproxima da mesa, um funcionário negro puxa a cadeira e a ajusta para que o senhor possa se sentar confortavelmente nela. A cena se repete a cada um dos poderosos senhores brancos, com suas longas capas, que chegam ao local de trabalho. Os funcionários são todos negros, ao menos nas imagens que circulam pelas redes sociais.
Um dia de rotina no Supremo Tribunal Federal, pelo visto. Seu presidente, Luís Roberto Barroso, já defendeu a “necessidade” de cada um dos ministros contar com um funcionário apenas para ajeitar sua cadeira e sua toga, vestimenta complexa de usar, pois pode enroscar. São os mesmos que recebem mais de dez mil reais só para auxílio moradia, além de inúmeros outros privilégios e regalias, para debater os rumos da nação entre lagostas e ótimos vinhos.
J.R. Guzzo chegou a falar num ecossistema próprio para o STF. Nossos ministros vivem numa bolha, com seus carros blindados e inúmeros seguranças, cada vez mais afastados do povo, que tratam como imbecis, incapazes de controlar suas próprias vidas, ou como “extremistas” e “bárbaros” que precisam ser “contidos” por iluminados, como eles próprios, os deuses do Olimpo.
Na reportagem de hoje na Gazeta do Povo, Leonardo Desideri fala da “Gilmarpalooza”, como ficou conhecido o grandioso evento do ministro Gilmar Mendes em Portugal. A cada ano o convescote dá uma turbinada, ganha mais força, refletindo, como diz o repórter, um Judiciário habituado a holofote e privilégios. Eu apenas acrescentaria o evidente lobismo dos puxa-sacos que frequentam essas rodas em busca de “esquemas”, já que o STF concentra um poder demasiado e abusivo em nossa estrutura nada republicana.
O patrimonialismo e a promiscuidade entre potenciais julgados e julgadores são a cara de um país dominado por uma casta acima das leis. A jurista Katia Magalhães comenta a situação: “A realização desses encontros enseja um ambiente de promiscuidade ostensiva, incompatível com os pilares de qualquer estado democrático de direito. Por consequência, a sociedade desconfiará de julgamentos envolvendo lideranças políticas, devido à notória proximidade entre estas e os togados responsáveis pela condução dos casos. Afinal, quem dará crédito às decisões de magistrados que forem vistos, amiúde, em convescotes com as partes litigantes nos processos?”
Os nossos senhores da era moderna não ligam para nada disso. É tudo barulho do “populacho”. Eles estão ocupados demais “salvando a democracia” com medidas arbitrárias e inconstitucionais. Eles precisam “empurrar a história” na direção que julgam ser “progresso”, já que os representantes eleitos não dão conta do recado. Quando cobrados pela lembrança de que não representam poder eletivo, alegam que representam “cem milhões de votos” cada um, transferindo num passe de mágica os votos do presidente e dos senadores responsáveis por suas sabatinas, que mais parecem um chá entre amigos.
É aquilo que mais se assemelha à nobreza na monarquia absolutista. Mas esses senhores togados estão convencidos de que agem para proteger a democracia. Ou perderam mesmo o pudor e não ligam mais para as aparências. “Derrotamos o bolsonarismo”, confessam sem qualquer constrangimento a parcialidade. Se um cidadão cobrar mais transparência, pode escutar um desaforo qualquer do tipo: “Perdeu, mané, não amola”. A “democracia” está a salvo. Ao menos para a casta dos iluminados.
Por Rodrigo Constantino, economista pela PUC com MBA de Finanças pelo IBMEC, trabalhou por vários anos no mercado financeiro. É autor de vários livros, entre eles o best-seller “Esquerda Caviar” e a coletânea “Contra a maré vermelha”. Contribuiu para veículos como Veja.com, jornal O Globo e Gazeta do Povo. Preside o Conselho Deliberativo do Instituto Liberal.