Todo mundo vai dizer, agora, que não se pode falar em ditadura na Venezuela, porque Maduro foi eleito mais uma vez pelo “voto popular”. Escreve J.R. Guzzo.
02/08/2024 15:10
“O que era um desastre virou um desastre duplo.”
Nunca o ditador Nicolás Maduro roubou tanto uma eleição quanto a que acaba de roubar, pela terceira vez seguida, na Venezuela. Nesta última, mudou o modo de operar, com fraude direto na veia, e deixou a impressão de que estava havendo uma disputa duríssima com o candidato da oposição – que poderia até ganhar e ter a sua vitória respeitada, segundo o próprio Maduro chegou a dizer. Os eleitores da Venezuela, mais uma vez, apenas perderam o seu tempo e se arriscaram a levar pancada da polícia, do Exército e das milícias do governo.
No momento que achou mais conveniente o ditador anunciou na noite de domingo que tinha ganhado, lógico, mas por 51% – para fingir uma vitória apertada, mas legal. Saiu do modelo de Cuba ou Coreia do Norte, onde as ditaduras sempre ganham de 90% para cima, e vai continuar dizendo, como seu parceiro Lula, que a Venezuela tem democracia “até demais”.
Não foi possível, visivelmente, inventar um resultado com os números que Maduro gosta; a vantagem do candidato da oposição, nas pesquisas e na mobilização de rua, ficou tão evidente durante a campanha, que acharam menos escandaloso criar um resultado com margem estreita. Todo mundo vai dizer, agora, que não se pode falar em ditadura na Venezuela, porque Maduro foi eleito mais uma vez pelo “voto popular”.
Foi criado, assim um falso clima de disputa – mas nunca houve disputa nenhuma. O que mudou foi a coreografia da farsa, e os vigilantes mundiais da democracia ficaram fazendo de conta que tudo ia se decidir no dia da eleição. Lula, parceiro número 1 da ditadura, montou a ficção de que estava angustiado com o “cumprimento do processo eleitoral” e mandou seu chanceler de fato ir até lá na hora da votação para garantir que tudo ia ser feito direitinho.
Mas o roubo da eleição, a essa altura, já estava mais do que acertado, e na cara de todo mundo. A oposição lançou uma candidata forte; Maduro, através do seu TSE, proibiu que ela concorresse. Lançou, então, uma segunda candidata; foi cassada como a primeira. Já daria, só aí, para puxar o cartão vermelho. É simplesmente impossível haver uma eleição limpa se o governo declara que os adversários que não gosta são “inelegíveis”. Mas ficou ainda pior.
Oposicionistas foram presos. Houve censura fechada. A primeira candidata cassada, que fez campanha contra Maduro, foi proibida de viajar de avião. Os cerca de 4 milhões de eleitores venezuelanos que se exilaram para fugir da fome e da repressão, foram impedidos de votar com falcatruas burocráticas armadas pelo governo. Não foi permitida a observação de fiscais internacionais. O nome e a foto de Maduro apareceram treze vezes na cédula de votação.
Se isso não é eleição roubada, o que seria? Para o Brasil de Lula, que ficou com a brocha na mão nessa história, como sempre fica quando se mete a ser “potência do Sul Global”, foi mais uma vergonha. Lula e o Itamaraty de Celso Amorim sempre estiveram na primeira fila das macacas de auditório de Maduro. Quando o ditador ameaçou a Venezuela com um “banho de sangue” caso não ganhasse a eleição, Lula ficou com medo de ter ido longe demais no seu apoio – e veio dizer que estava perturbado com a ameaça.
Levou um cala-boca de Maduro – “vai tomar um chá de camomila” – ouviu que as sacrossantas urnas do TSE não são auditáveis e baixou o facho. Juntou-se agora a Cuba, Rússia, Nicarágua e todas as outras ditaduras do mundo para elogiar o “caráter pacífico da jornada eleitoral” e exigir respeito à contagem de votos apresentada por Maduro. O que era um desastre virou um desastre duplo.
Por J.R.Guzzo é jornalista. Começou sua carreira como repórter em 1961, na Última Hora de São Paulo, passou cinco anos depois para o Jornal da Tarde e foi um dos integrantes da equipe fundadora da revista Veja, em 1968. Foi correspondente em Paris e Nova York, cobriu a guerra do Vietnã e esteve na visita pioneira do presidente Richard Nixon à China, em 1972. Foi diretor de redação de Veja durante quinze anos, a partir de 1976. Nos últimos anos trabalhou como colunista em Veja e Exame.