Opinião – O Estado Judiciário de Direito

O Estado Judiciário de Direito é como Elis Regina interpretando Tom Jobim ou o Pavarotti cantando Verdi: interpreta a vontade do autor melhor do que ele próprio. Escreve Rafael Pinaud.

12/09/2024 11:40

“Na sua cabeça, é um poder ‘pica das galáxias’ “

Estátua da Justiça em frente ao STF. Foto: Fellipe Sampaio-SCO/STF

Duvido que você nunca tenha acreditado que a Justiça brasileira é cega. Se nunca acreditou, pode começar agora, pois apenas alguém cego de nascença não carrega consigo aquela voz interior que avisa que alguém pode estar vigiando. Foi nessa cegueira que nasceu o Estado Judiciário de Direito, um poder acima de todos os outros e imune à vermelhidão da vergonha, que só acomete quem precisa se explicar.

O Estado Judiciário de Direito, de tão próximo do cidadão comum, virou quase uma subcelebridade. Dá raras entrevistas diárias, faz posts polêmicos, briga em aeroportos e nunca perde a oportunidade de criticar o Brasil no exterior. Tudo isso com um talento artístico único, de uma época em que, para ganhar fama, era preciso saber atuar, cantar e dançar.

Esse Estado não perde papel. Pode ser vítima, investigador, acusador e juiz ao mesmo tempo. E, além disso, atua como roteirista criativo e diretor de grandes espetáculos. Como bom artista que é, abraçou o amor, abandonou o ódio com pitadas de psicopatia e se distanciou das acusações de manter escritórios abertos ou de exercer um coronelato em Goiás.

Resolveu cercar seu palácio e ficou como uma corte sem rei, que não garante felicidade para os que vivem dentro dos seus muros e também impede a busca por ela do lado de fora. Retorna de suas aparições públicas convencido de que, por qualquer ângulo, está cada vez mais forte, mais supremo e mais excelentíssimo. Afinal, quando descobriu que não era possível conquistar respeito, começou a inspirar temor e, assim, se transformou num sistema muito mais organizado e “limpo” do que qualquer outro.

Trata-se de um medo indevido, pois, na realidade, estamos vivendo o maior projeto de harmonia entre os poderes da República: o Estado Judiciário de Direito manda e o resto do país obedece. Game over para aquela instabilidade do artigo 142 da Constituição.

O Estado Judiciário de Direito é como Elis Regina interpretando Tom Jobim ou o Pavarotti cantando Verdi: interpreta a vontade do autor melhor do que ele próprio. Foi como um intérprete dedicado que fez seu regimento interno prevalecer sobre cláusulas pétreas e sua jurisprudência mudar independentemente de leis ou de fatos sociais.

Esse poder legislou, invadiu competências, se ofendeu, investigou, julgou, puniu e, quando achou oportuno, permitiu a matança de amontoados de células em nome de um novo patamar civilizatório e de nobres intenções. Tão elevado é esse patamar que considera foragidos os cidadãos americanos fora do alcance da sua força armada. Na sua cabeça, é um poder “pica das galáxias”.

Polivalente que é, no seu quintal, cala o Congresso por decisões monocráticas e derruba vetos presidenciais. Foi assim com a impressão do voto e com a desoneração da folha de pagamento. No milagre econômico desse patamar, a elite estatal se declara povo, estudantes de universidades públicas se declaram governo e os trabalhadores comuns se declaram para a Receita Federal.

Nesse regime, Hermes Lima, autoridade em direito internacional, seria preterido por alguém que tivesse a virtude de representar uma minoria sexual vestida com uma camiseta dos “Gays pela Palestina”. No Estado Judiciário de Direito só há lugar para um grupo com direito à fala. Um grupo capaz de chamar seus oponentes de “animais selvagens” que devem ser “extirpados”.

Magnânimo, o Estado Judiciário de Direito perdoa condenados por serem inocentes: ex-delatores da Lava Jato e figuras como José Dirceu e Sérgio Cabral. Tudo em nome do redescobrimento de um Brasil oligárquico que valoriza a família. Afinal, a família é a base de qualquer sociedade civilizada. O Estado Judiciário de Direito entende isso tão bem que devolveu milhões a empreiteiras em processos que tinha as esposas de ministros como advogadas. A vontade e um bom programa de governo bastam até para tornar o Conselho Federal de Medicina incompetente para definir os padrões éticos do exercício da medicina.

“Ah! Mas falta representatividade popular”, acusam alguns. Esqueçam, eles já penhoraram para si os votos dados aos presidentes e ex-presidentes que os nomearam.

Dizem que a democracia é a possibilidade de o piolho viver e de se alimentar na juba do leão. Atento a essa verdade democrática, o Estado Judiciário de Direito inaugurou o Museu da Democracia, uma espécie de placa pendurada no pescoço da fera com os dizeres: “Contém piolho”. Dizem que para frear esse poder basta um cabo e dois soldados. Disso eu não sei, mas sabemos que, para derrotar a lógica, basta atacar a capacidade de indignação da piolhada.

Duvida? Pela lei vigente, não é legal adquirir, guardar, depositar ou transportar droga, inclusive para consumo pessoal. Mas, em nome do ranking civilizatório, o Estado Judiciário de Direito decidiu que está valendo adquirir, guardar, depositar e transportar até alguns gramas de erva de artista. Essas diretrizes, atualizadas, levaram o STJ a decidir que é perfeitamente possível ter três estufas, três quilos de planta de artista e uma balança sem perder a condição de cidadão de bem.

É claro que isso tudo é também para o nosso bem! Foi um sagaz golpe no tráfico, afinal, tirou o risco do tráfico, e todos sabem que os jovens só entram nele pela adrenalina de trocar tiros de fuzil com a polícia. Parece óbvio que preferirão vender chicletes no trânsito; ao menos ali haverá o real risco de um atropelamento. Negacionismo é invocar estudos que apontam que o consumo de cigarro de artista aumenta o risco de doenças mentais nos jovens e que esse consumo aumenta a cada geração. Nessa linha, também não dá para aceitar piada com certas preferências sexuais.

O Estado Judiciário de Direito decidiu e está decidido: é crime! Ao menos até que o Congresso Nacional faça uma lei para ratificar a criminalização que até agora não tem uma lei anterior que a defina. “Mas o Congresso Nacional ainda nem pautou a questão da união civil entre pessoas do mesmo sexo!”, dizem os críticos querendo diminuir essa conquista do nosso Estado Judiciário de Direito.

Acabou esse negócio fascista de direito taxativo à opinião. Alheio às críticas, o Estado Judiciário de Direito segue fazendo o bem sem olhar a quem. Repare só. Ao controlar veículos de comunicação, recolher revistas, apagar matérias digitais, proibir documentários e multar cidadãos que usam VPN para acessar o Telegram, o Estado Judiciário de Direito anistiou até a Ditadura Militar, que não ousou tanto.

Com um protagonismo que seria rechaçado por Sydney Sanches, o Estado Judiciário de Direito assume que se tornou um poder político, o que causou espanto até no ex-presidente francês, Nicolas Sarkozy. Já que é político, pode ver, rever, voltar atrás no que viu e determinar que se “desveja” a validade e os parâmetros para a prisão preventiva, para a presunção de inocência, para o devido processo legal, ampla defesa e censura.

E foi agindo assim que a expressa proteção à vida, desde a sua concepção, ganhou um vacatio legis para permitir a eliminação de uma não-vida entre a concepção e determinada semana de gestação. Reza a agenda que há mais vida em ovos biológicos do que em embriões supostamente humanos alojados em pessoas com útero.

Civilizado é encarar o assassino como vítima de violação de direitos humanos. É preciso garantir o exercício do direito reprodutivo da pessoa com útero, fazendo com que ninguém solte a mão de ninguém para pagar o boleto da conta do aborto seguro. OK, seguro é bom, mas seguro para quem?

Uma segurança tão real quanto a hipótese de buscar a opinião de alguém abortado sobre o tema. Civilizado mesmo é achar que a vida só começa no momento em que a mulher aceita a maternidade. Lógico que o dono do espermatozóide não terá esse direito de aceitação. O dever dele de pagar pensão vem com a concepção; é anterior à própria vida. Chega dessa barbárie de encarar a unidade familiar como uma comunidade de vida e amor. Civilizado é enxergá-la como um teatro de guerra entre os sexos.

Nada mais civilizado do que o Tribunal de Direitos Humanos de Estrasburgo, que negou ao pai o direito de se opor à decisão da mãe pelo direito não reprodutivo. Vitória das mulheres! Mas não daquela que o pai tentou trazer ao mundo. No patamar civilizatório, importante mesmo é ter vagão exclusivo para mulheres, banheiro igual para todes e penas leves para criminosos de sangue, que são mais que apenas um amontoado de células criminosas. Pena capital apenas para nascituros, que em última análise são misóginos.

Civilizado é proibir operações policiais em comunidades dominadas pelo tráfico para levar aos varejistas de entorpecentes a justa sensação de segurança. Outro salto darwiniano foi proibir a revista de visitantes em presídios, mesmo diante dos números dos 12 meses anteriores: 254 mil presos com aparelhos celulares, armas de fogo e drogas.

Por falar em convivência, nada mais evoluído do que os membros do Estado Judiciário de Direito receberem patrocínios antes de julgarem as ações de seus patrocinadores. Como não considerar justo que esse poder, essa potência, custe mais caro que a família real britânica?

Ao contrário da coroa britânica, que sofre com os periódicos sensacionalistas, o Estado Judiciário de Direito conta com assessoria de imprensa em cadeia nacional e com reiteradas notas de apoio da OAB, que finge demência diante de julgamentos sem prerrogativa de foro e sem direito a duplo grau de jurisdição. Finge não ver colegas tentando defender clientes contra o julgamento das próprias vítimas. O Estado Judiciário de Direito obrigou as faculdades a se adaptarem às novas figuras do flagrante permanente, do indevido processo legal e do amplo segredo às defesas.

Não é preciso muito para concluir que precisamos acreditar na mansidão do lobo e nas juras de amor da prostituta para poder gozar da liberdade neoconstitucional.

Viva o Estado Judiciário de Direito !

 

 

 

 

Por Rafael Pinaud Freire, advogado.

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