Opinião – Parabéns pela eleição, prefeitos! Mas e depois? 

A maioria dos mais de 5.500 municípios do país parece estar rolando morro (…) no qual o aumento de recursos serve principalmente para gerar empregos públicos. Escreve Jonas Rabinovitch.

25/10/2024 06:09

“A Lei Fiscal determina que as prefeituras não gastem mais do que 54% da sua Receita”

Segundo turno das eleições de 2024 ocorre em 27 de outubro.| Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil de Comunicação

Dos 5.569 municípios no Brasil, 5.518 deram um novo mandato para seus prefeitos. Mais 51 municípios elegerão prefeitos no dia 27 de outubro.  Qualquer cartilha para prefeitos diz: “Ao assumir o cargo, um prefeito deve priorizar uma avaliação abrangente do estado atual da cidade, incluindo problemas e necessidades mais urgentes, reunindo-se com as principais partes interessadas e revisando os dados existentes, para estabelecer uma visão clara e definir prioridades para sua administração”. Parece fácil, mas na prática, o Brasil acaba de quebrar três recordes históricos.

O primeiro deles é o aumento recorde no número de municípios com déficit. Em 2022, apenas 7% dos municípios tinham déficit. Em 2023 esse número aumentou para 51% com as contas no vermelho, segundo dados da Secretaria do Tesouro Nacional. A Confederação Nacional de Municípios (CNM) explica: “Houve pequeno crescimento da arrecadação e a expansão generalizada do gasto público, em especial das despesas de custeio, que é a manutenção da máquina pública”. Ou seja: 44% dos municípios brasileiros, cerca de 2.450, passaram a ser deficitários de 2022 para 2023. Por quê?

O segundo é o aumento recorde no número de contratações de funcionários públicos municipais. Em setembro de 2024 o emprego público bateu um recorde histórico. As prefeituras puxaram esse aumento com um total de 13 milhões de contratações. As prefeituras são o maior empregador do país em 56% das cidades pequenas. Segundo dados do Tesouro Nacional e do Banco Central, 49% dos municípios do Brasil estão gastando mais do que arrecadam. Por fim, tivemos o aumento recorde no número de prefeitos reeleitos. O número de prefeitos reeleitos em outubro de 2024 foi o maior da história.  Oito em cada dez prefeitos conseguiram sua reeleição.

O meu lado mais otimista gostaria de pensar que esses prefeitos foram reeleitos por estarem fazendo um bom trabalho. O meu lado mais realista teme que tenha havido um abuso de contratações e de recursos da máquina pública para priorizar a reeleição. A verdade é que possivelmente as duas situações existem em proporções bem reveladoras, mas não quero generalizar. De qualquer forma, resolvido o problema do seu próprio emprego, o verdadeiro teste para prefeitos será resolver segurança, saúde, saneamento básico, educação, transporte, habitação, meio ambiente, parcelamento e uso do solo urbano, infraestrutura urbana etc. para todos.

Enfim, a maioria dos mais de 5.500 municípios do país parece estar rolando morro abaixo em um perigoso círculo vicioso no qual o aumento de recursos serve principalmente para gerar empregos públicos, os quais, por sua vez, apenas endividam cada vez mais a máquina pública. A Lei de Responsabilidade Fiscal determina que as prefeituras não gastem mais do que 54% da sua Receita Corrente Líquida com pagamento de pessoal e encargos.  De acordo com a Câmara dos Deputados, cerca de 3.400 municípios brasileiros não cumprem a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), mas ninguém parece saber detalhes com certeza. A única certeza é que a lei não é cumprida.

Algumas soluções sendo apresentadas incluem: 1) Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 66/20230, abrindo novo prazo de parcelamento especial de débitos dos municípios; 2) PEC 25/2022, que prevê o repasse adicional de 1,5% do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) em março de cada ano; 3) Projeto de Lei (PL) 334/2023 – a famosa desoneração da folha – que reduz a alíquota do Imposto Nacional de Seguridade Social (INSS) a ser pago pelas prefeituras até 2027; 4) PEC 40/2023, que prevê um adicional mensal no Fundo de Participação dos Municípios por dois anos, entre outras medidas.

Ao mesmo tempo, a maior parte dos municípios brasileiros têm alta dependência das transferências de recursos da União e Estados. Do total de tributos arrecadados, aproximadamente 58% ficam com a União, 24% com os estados e 18% com os municípios.  Segundo o Tesouro Nacional, a despesa do Brasil com governo – federal, estadual e municipal – equivale aproximadamente a 46 % do Produto Interno Bruto (PIB). Notem o absurdo: os altos custos do governo consomem quase metade de tudo que o país produz a cada ano. O Fundo Monetário Internacional mostra que o Brasil tem os mais altos custos de governo entre todos os países em desenvolvimento.  Até nos EUA, o governo custa menos: 36.26% do PIB.

Com todo o respeito às nossas instituições, o povo fica na arquibancada tentando assistir a uma espécie de jogo sabendo que, no final, nós é que vamos sair perdendo. Parece futebol pela desproporção entre pouquíssimos jogadores e muita plateia. Mas se chama política. É uma complexa queda de braço entre lideranças parlamentares, interesses partidários, discordâncias entre poderes e entre níveis federativos para decidir quem paga quanto para quem. Estou falando de alíquotas tributárias e fechamento de contas. Afinal, se as contas da União não fecham ou se as contas do estado ou do município não fecham, quem perde sempre é a plateia. O bolo é o mesmo. A fonte é a mesma: nosso bolso.

A política no Brasil desafia as leis da matemática e da física, particularmente a Lei da Impenetrabilidade, pela qual dois corpos não podem nunca ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo. Os penetrados somos nós que pagamos os impostos.  Quero ressaltar não apenas a necessária harmonia entre os poderes, mas também a melhoria na qualidade dos serviços públicos oferecidos pela união, estado ou município – os quais na realidade ocupam o mesmo espaço físico. Há alguma coisa errada em desenhar sistemas políticos que pelo menos atendam às necessidades básicas da população? Até quando a briga por recursos será mais importante do que os fins para os quais os recursos se destinam?

As soluções parecem priorizar apenas o aumento da arrecadação, enquanto a questão fundamental seria mudar o desenho e a eficiência dos investimentos sendo feitos. Aparentemente o líder não é aquele que sabe orientar uma visão e um caminho comum para todos, mas aquele que controla um orçamento maior. As cidades e seus habitantes sofrem. No lado prático, quando não existe habilidade para construir uma visão clara e um caminho comum, as prefeituras geralmente enfrentam algumas doenças típicas das administrações municipais como a “consultivite”, quando um prefeito não sabe o que fazer e contrata muitas consultorias para apontar possíveis soluções; a “participatite”, quando há a boa intenção de promover participação popular, mas acompanhada da ilusão de que a participação por si só traria soluções. Participação popular complementa projetos, mas não substitui a liderança; a “diagnausea” – em dúvida, prefeituras iniciam diagnósticos para tudo, imaginando que diagnósticos poderiam automaticamente revelar como resolver problemas de forma prioritária. Não funciona assim; e a “pecuniarite” – muito comum, popularmente conhecida como “falta de dinheiro”. Conforme discutido há duas formas de “pecuanirite”: crônica e aguda. A pecuniarite crônica é estrutural. Após a Constituição de 1988, mais de mil municípios novos foram criados por razões políticas sem capacidade para arrecadar recursos próprios e sobreviver sem apoio do Estado e da União. A pecuniarite aguda acontece quando prefeituras incham a folha de pagamento, estourando seu orçamento ao transformar o poder público em cabide de empregos.

Neste primeiro milênio das cidades, prefeitos terão que enfrentar cada vez mais desafios com menos recursos. O Brasil segue uma tendência mundial: as cidades médias – aquelas entre 100 e 500 mil habitantes – são as que mais crescem. Seria um grande desperdício repetir os mesmos erros cometidos pelas megacidades no passado.

A administração pública precisa se adaptar às pessoas e não o contrário. Não conheço nenhum político no mundo que não esteja interessado na satisfação da cidadania. Com frequência, prefeituras até sabem para onde ir, mas não sabem como chegar lá. E para chegar lá não existe fórmula mágica. Todas as cidades inovadoras parecem ter seguido alguns princípios básicos, como enxergar a realidade urbana de forma integrada; eliminar fontes de corrupção; promover planejamento estratégico; aumentar a transparência; e incentivar o engajamento do setor privado e da população em projetos estratégicos adequados às prioridades e realidade de cada cidade.

Mas primeiro seria preciso arrumar a casa.

 

 

 

Por Jonas Rabinovitch é arquiteto urbanista com 30 anos de experiência como Conselheiro Sênior em inovação, gestão pública e desenvolvimento urbano da ONU em Nova York.

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