”É preciso falar mais sobre o Islã”, diz Tariq Ramadan

14/03/2010 12:16

Tariq é professor de estudos contemporâneos muçulmanos da Universidade de Oxford e presidente da Rede Muçulmana Europeia

Neto de um fundador da irmandade muçulmana, grupo egípcio precursor do fundamentalismo islâmico, Tariq Ramadan nasceu e foi criado na Suíça, um dos exemplos mais bem-acabados de democracia. O resultado dessa mistura é um intelectual ímpar. Ao mesmo tempo que defende a ideia de um islã tolerante, reformista e não violento, Ramadan estimula os muçulmanos a combater a estigmatização e critica o “imperialismo ocidental”. Ficou seis anos proibido de entrar nos Estados Unidos porque uma doação sua teria ido parar nas mãos do grupo terrorista palestino Hamas. Em janeiro, a Casa Branca suspendeu o veto. O mesmo ainda não ocorreu na Arábia Saudita, no Egito e na Tunísia, cujos governos ele acusa de autoritarismo.

QUEM É
Nasceu em Genebra, na Suíça, em 26 de agosto de 1962

O QUE FEZ
É professor de estudos contemporâneos muçulmanos da Universidade de Oxford e presidente da Rede Muçulmana Europeia, uma instituição que reúne intelectuais e ativistas

O QUE PUBLICOU
What I believe (2009), Radical reform, Islamic ethics and liberation (2008), além de mais cinco livros e dezenas de artigos 

A França estuda a aprovação de uma lei que proíba o uso, em locais públicos, da burca e do niqab, vestes que cobrem o rosto da mulher. Como o senhor avalia essa medida?

Tariq Ramadan – Em primeiro lugar, não acho que a burca e o niqab sejam prescrições muçulmanas. Mesmo assim, também não acho que banir essas vestes por meio de uma lei seja a medida certa a tomar. É uma questão de educar as pessoas e fazer com que elas entendam que essa não é a interpretação correta (do Corão, o livro sagrado do islã). A lei seria problemática porque, na legislação europeia, seria entendida como discriminatória.

Uma das justificativas jurídicas do projeto é que cobrir o corpo todo é um comportamento que fere a dignidade das outras pessoas, como andar nu nas ruas.

Ramadan – Esse argumento deve ser descartado porque, para algumas pessoas, usar minissaia seria sinal de falta de dignidade. Quando se fala de moralidade, o importante é que a discussão seja feita, antes de sairmos dizendo que uma coisa é digna e outra não é. Na tradição islâmica há diversas regras para a mulher do Profeta. Ela obtinha sua dignidade ao se distanciar das outras pessoas. No mundo atual temos de discutir sensibilidades coletivas, como é esse caso.

Em novembro do ano passado, a Suíça aprovou, por meio de referendo, a proibição da construção de minaretes (as torres das mesquitas). Como o senhor avaliou essa decisão?

Ramadan – Responder à presença islâmica com leis restritivas não é o caminho certo. Simplesmente não é. Banir minaretes em um país onde há igrejas e sinagogas e dizer que eles são símbolos da arrogância muçulmana é errado. Não vamos resolver problema algum indo por esse caminho.

O número de muçulmanos na Europa, que na década de 1950 era insignificante, hoje está próximo de 20 milhões. O que os europeus devem fazer para aprender a conviver com os muçulmanos?

Ramadan – Em primeiro lugar é preciso olhar os fatos e números e ver que essa convivência é um processo em andamento e que a maioria dos muçulmanos cumpre as leis europeias. É preciso reconhecer a presença positiva dos muçulmanos na política, no esporte e em muitas outras áreas, e divulgar sua importante participação na evolução de aspectos como a história, a filosofia e as ciências no continente. As raízes da Europa também são muçulmanas, não apenas gregas, romanas, cristãs e judaicas.

No ocidente há uma tendência a relacionar os muçulmanos com a violência. O que os muçulmanos devem fazer para evitar essa imagem?

Ramadan – É extremamente importante falar sobre sua religião e torná-la mais compreensível para os outros em vez de continuar mantendo a religiosidade apenas dentro de si mesmo, fomentando uma mentalidade de vítima das outras religiões ou outros povos. É preciso falar mais sobre o Islã, sobre os princípios da religião, o que ele defende e sobre valores universais como justiça, paz e igualdade, que estão presentes na religião. Isso está acontecendo e eu chamo de “revolução silenciosa”. O que a nova geração de muçulmanos está fazendo na Europa é completamente novo. É uma revolução intelectual que consiste em entender melhor a própria religião e o ambiente ocidental em que vivem.

O cristianismo aprendeu a viver com um Estado secular. É possível o islã conviver com um Estado secular?

Ramadan – Sim, claro que é. Já estamos fazendo isso na Europa. Como eu disse, a maior parte dos muçulmanos que estão na Europa cumpre as leis locais, aprende a língua do país, é leal ao governo. Eles estão vivendo sem problemas em Estados seculares. Milhões de muçulmanos europeus, americanos, canadenses, australianos, neozelandeses estão fazendo isso todos os dias.

Mas, e nos países de maioria muçulmana? Esses países já experimentaram regimes como o nacionalismo árabe, o pan-arabismo e agora se vê um crescimento do fundamentalismo. Qual é a alternativa a isso?

Ramadan – O que precisamos é de um debate interno entre os muçulmanos, que precisa ser promovido para as pessoas refletirem. Claro que haverá posições conservadoras e literais, mas o que precisamos é de uma visão reformadora do islã, que não surgirá do dia para a noite. Ela virá com um debate crítico que precisa ser travado nos países de maioria muçulmana e entre os muçulmanos no ocidente.

Essa visão liberal do Corão que o senhor defende não é muito comum entre os muçulmanos. O senhor acredita que sua posição vai crescer no futuro?

Ramadan – Ao contrário do que dizem, a visão majoritária está muito próxima do que eu defendo. Não é verdade que as minhas ideias são marginais no mundo muçulmano. O que eu estou tentando fazer é promover uma tendência reformista, que respeite o texto (do Corão) e leve em conta o contexto em que ele foi escrito e aquele no qual vivemos. Se você viajar pelo mundo entrevistando muçulmanos, claro que vai deparar com outras interpretações, algumas tradicionalistas e literalistas, mas vai ver que minha posição não é marginal. E eu estou tentando fazer com que ela seja cada vez mais ouvida e mais visível.

Muitos estudiosos defendem a relação entre o crescimento do fundamentalismo e a pobreza e a desigualdade social. O que o senhor acha disso?

Ramadan – Os fatos desmentem esse tipo de ideia. Entre os envolvidos no 11 de Setembro e no 7 de julho (dia dos atentados ao transporte público de Londres, em 2005) havia muitas pessoas ricas e até estudantes de doutorado. A pessoa pobre não se torna mais radical ou faz essa “reconvesão” à religião por conta de sua condição social. Essa é uma visão simplista demais. Muitos dos que estão se tornando radicais são educados e estão em sociedades altamente industrializadas.

A que o senhor atribui o crescimento do fundamentalismo?

Ramadan – Gostaria de dizer que não uso o termo fundamentalismo. Chamo as posições conservadoras de literalismo e a matança de inocentes de extremismo. O primeiro fenômeno pode ser uma forma de se proteger da sociedade tirânica e o segundo é fruto de uma visão política superficial e estreita sobre como devemos lidar com o ocidente. Eles acham que matando pessoas vão mudar o que eu chamo de “imperialismo ocidental”, mas isso é anti-muçulmano.

Os Estados Unidos ainda estão tentando implantar uma democracia de moldes ocidentais no Iraque. No Afeganistão, há uma tendência a buscar um diálogo até com o Taleban. Como o senhor analisa a instalação de uma democracia ocidental em um país muçulmano?

Ramadan – Não é possível impor uma democracia. É preciso dividir valores como Estado democrático de direito, igualdade dos cidadãos, sufrágio universal, separação de poderes e prestação de contas. Mas o modelo de democracia deve vir de dentro da sociedade, pois tem a ver com a história e a psicologia coletiva.

Em janeiro, o departamento de Estado americano suspendeu o veto que proibia sua entrada no país. Como o senhor recebeu essa notícia?

Ramadan – Para mim foi muito bom, porque limpa meu nome de forma definitiva. Eu não vou mais morar nos EUA, mas o primeiro momento da revogação do visto foi muito ruim para mim. Meus filhos já estavam matriculados em escolas americanas e estava tudo pronto para a mudança. Depois percebi que, com a administração Bush, tudo seria possível, e tudo foi possível. A minha conclusão é que ser banido pela administração Bush é, mais que qualquer outra coisa, uma honra.

(Fonte: G1)