20% das curetagens ocorrem depois dos abortos clandestinos

23/08/2010 10:55

Mensalmente, uma média de 182 mulheres realizam cirurgias de curetagem pós-aborto em todo o Mato Grosso. Apesar de não haver dados oficiais, por trás destes números podem estar muitos casos de abortos que foram provocados e realizados na clandestinidade.

No hospital Universitário Júlio Müller, que é referência na realização de curetagem, o setor de obstetrícia e ginecologia estima que 20% das mulheres que chegam à unidade para realizar a cirurgia podem ter provocado o aborto. “Quando é natural, a história é coerente. Mas temos casos de mulheres que chegam contando histórias muito fora da realidade. Situações que não costumam resultar em aborto. Apesar de não termos a confirmação, suspeitamos que nestes casos houve a ingestão de algum medicamento ou até procedimento realizado irregularmente, que gerou complicações”, detalhou o chefe do setor de ginecologia e obstetrícia do hospital, Paulo Leão.

Apesar de manter os casos em sigilo, devido a ética profissional, o médico revela que este índice já foi maior em anos passados. “Hoje as drogas abortivas estão muito mais potentes”.

O que ocorre, conforme o ginecologista, é que muitas mulheres insistem em tomar o medicamento mesmo estando com um maior tempo de gestação, o que pode acarretar em problemas à mulher e até sequelas ao bebê.

E não foram somente os abortivos que se tornaram mais eficientes. Profissionais e clínicas que realizam o trabalho, clandestinamente, também têm se aperfeiçoado. Leão explica que são raros os casos em que há complicações e as mulheres acabam tendo que ser internadas posteriormente. “Anos atrás estes procedimentos eram realizados muito precariamente e resultavam em infecções nas mulheres, que, em alguns casos, acabavam morrendo. Hoje isso quase não ocorre mais”.

Clandestinidade – A identificação dessas clínicas é um grande desafio até mesmo para a Polícia. Segundo a delegada Mara Rúbia, da Delegacia da Criança e Adolescente de Cuiabá, apesar de saberem da existência, não há informações que levem a Polícia até estes locais.

Até mesmo as denúncias que chegam à Polícia em relação ao crime são poucas. Este ano, conforme ela, apenas um caso é investigado. “A mulher acusa o pai de tentar obrigá-la a tomar um abortivo. Estamos investigando”.

O cenário é o mesmo em outras localidades. Em Várzea Grande, segundo a delegada Juliana Palhares, os procedimentos realizados clandestinamente não chegam ao conhecimento da Polícia. “Este ano recebemos duas denúncias, mas são situações totalmente diferentes. Em uma delas, por exemplo, a mãe era usuária de drogas e o filho nasceu morto”.

No Judiciário, nos últimos 5 anos, apenas 1 caso foi julgado em Cuiabá e o réu foi condenado por lesão corporal.

Morte materna – Uma das grandes preocupações com a realização de abortos clandestinos é a morte das mães, situação que coloca em discussão a descriminalização do aborto. O direito de interromper a gravidez somente é garantido às vítimas de violência sexual, quando a mãe corre risco de morte ou em casos que o feto apresenta alguma deformidade grave.

A doutora em ciências pela Universidade Federal de São Paulo (UFESP), Neuma Zamariano Teixeira, relata que há vários movimentos no país que lutam para que o aborto deixe de ser crime. “Temos casos de vários países onde foi descriminalizado e houve redução na morte materna. Não estamos falando em legalizar o aborto, mas em descriminalizá-lo”.

Em sua tese do doutorado, a professora entrevistou familiares de 11 mulheres que morreram, no ano de 2006, em Cuiabá, somando as estatísticas de morte materna. Em 2 casos, as vítimas tinham feito aborto, sendo que um deles foi provocado, ou inseguro, termo que passou a ser adotado.

Inseguro – Idivalnete Lemes, morreu aos 30 anos e estava grávida de 3 meses. Ela foi internada em estado grave com infecção generalizada após um aborto inseguro em junho de 2006. Como a família não tinha conhecimento da gestação, os médicos só descobriram a causa após a curetagem que retirou o feto.

A pessoa que realizou o procedimento nunca foi identificada. Tudo foi feito no apartamento da vítima, o que facilitou a contaminação da mesma. Aliado a não retirada do feto, ela teve infecção. Foram encontrados vários ferimentos nos órgãos genitais e no útero da mulher, comprovando que algum material foi introduzido.

O ex-marido de Idivalnete, com quem ela tinha 2 filhos, o advogado Agrícola Paes de Barros Júnior, foi acusado de incentivá-la a realizar o procedimento e será levado a júri popular.
Investigação – Todas as mortes de mulheres em idade fértil – 10 a 49 anos – são investigadas por um comitê da Secretaria Municipal de Saúde. Isso porque, em muitos casos, as vítimas nem sabem que estão grávidas ou podem esconder informações.

Segundo a doutora Neuma Zamariano Teixeira, em 2006, das 11 mortes, apenas 6 foram diagnosticadas como morte materna. As outras 5 foram descobertas após o trabalho do comitê. “Este comitê ouve a família, amigos, e tenta descobrir o que realmente aconteceu com a vítima”.

Em sua tese de mestrado em Saúde Coletiva pela Universidade Federal do Mato Grosso, a professora de enfermagem Eluani Vilarinho também apurou as causas das mortes maternas em Cuiabá no período de 1996 a 2005.

Dos 50 casos diagnosticados, 10 foram consequências de abortos, o equivalente a 16%. Porém, neste número, não foi possível detectar se houve casos ilegais.

A pesquisa revelou que a maioria dos abortos ocorreu com mulheres solteiras e com escolaridade acima de 8 anos.

Mato Grosso – De acordo com o sistema Datasus do Ministério da Saúde, em 2008, 39 mortes maternas foram diagnosticadas no Estado, destas, 8 em Cuiabá e 6 em Várzea Grande. Duas delas tiveram como causa o aborto.

Nos 2 anos anteriores (2007 e 2006) este número foi menor, 29 e 35, respectivamente. Nos 2 anos Cuiabá teve registros de aborto como causa. Em 2005 este número foi bem maior, com 45 mortes.

A curetagem é uma intervenção cirúrgica que permite retirar os restos do feto e é necessária quando existem complicações após um aborto médico ou aborto espontâneo, por exemplo no caso de infecção ovular (aborto infectado) ou quando o abortamento é incompleto e possa constituir uma ameaça para a mãe.

Venda ilegal – Apesar de ter sido proibido pelo Ministério da Saúde, o remédio Cytotec, usado indiscriminadamente para o aborto, é encontrado com facilidade em Cuiabá no mercado informal. A pena para quem vende o medicamento é prevista de 1 a 4 anos de reclusão.

O Código Penal Brasileiro prevê pena de 1 a 3 anos para a pessoa que provoca o aborto em si mesma ou consente que outra o provoque (artigo 124). O artigo 125 do CP prevê ainda pena de 3 a 10 anos para quem provocar aborto, sem o consentimento da gestante e pena de 1 a 4 anos se provocar aborto com o consentimento da gestante (artigo 126). No caso do artigo 126, a pena é aplicada se a gestante não é maior de 14 anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência.

O procedimento só é permitido às vítimas de violência sexual, quando a mãe corre risco de morte ou em casos que o feto apresenta alguma deformidade grave.