Nem toda doença tem causa psicológica

11/11/2011 09:10

Perguntaram a 320 mulheres de São Paulo, Porto Alegre, Rio, Belo Horizonte e Salvador quais eram os fatores de risco para câncer de mama: 87% das pessoas com o tumor e 61% das sadias citaram o stress como vilão número 1. As participantes da pesquisa Câncer de Mama, Experiências e Percepções, realizada pela Pfizer, acreditam que não só o câncer tem origem na alma mas as doenças em geral: 76% das doentes e 68% das sadias. Das primeiras, 47% foram categóricas ao garantir que a causa do tumor delas era emocional. “É um erro de avaliação, um mito a ser destruído”, afirma o oncologista Sergio Daniel Simon, professor-adjunto da Universidade Federal de São Paulo e coordenador da pesquisa. O stress nem sequer aparece na relação de fatores de risco para câncer de mama. Trabalhos científicos apontam as questões da vida moderna: não ter filhos ou ser mãe tardiamente; amamentar pouco; primeira menstruação antes dos 11 anos; menopausa após os 50; dieta rica em gorduras; consumo excessivo de álcool; histórico familiar da doença e terapia de reposição hormonal. “Os estudos globais levam a crer que o stress não tem influência. Os que dizem o contrário trazem amostras pequenas ou falhas metodológicas”, afirma Simon. O oncologista explica que o câncer é uma doença multifatorial, fruto de complexas interações entre o DNA celular e as condições ambientais. Por isso, é improvável que as emoções, por si só, sejam capazes de iniciar a multiplicação desordenada das células – diferentemente do que ocorre nas doenças cardíacas, em que os sentimentos podem ter papel preponderante.

Assim, não se trata de negar a influência do psiquismo nos processos orgânicos. Nem de voltar à época em que o filósofo francês René Descartes (1596-1650) cravou a separação entre corpo e mente. Sabe-se hoje que ambos interagem por meio de uma intricada rede de hormônios, proteínas e neurotransmissores mediada pelo cérebro. Mas é preciso ver o peso de cada um. A pesquisa sobre o câncer alerta para o perigo de ceder ao raciocínio simplista de que toda doença tem origem emocional. “Travestida de interpretação psicanalítica, essa filosofia de almanaque nada mais é do que a versão contemporânea da prática secular de atirar no doente a culpa pela doença”, escreveu o oncologista Drauzio Varella. “Na Idade Média, a hanseníase acometia apenas os ímpios que desafiavam a ira do Senhor; no século passado, morriam de tuberculose as moçoilas desiludidas e os rapazes devassos; e, mais recentemente, adquiriam aids somente os promíscuos.” Para ele, é ridículo esquecer que a hanseníase e a tuberculose são causadas por bactérias desinteressadas no que pensam seus hospedeiros e a aids por um vírus alheio a julgamentos morais.

Transformar as emoções em bode expiatório atrasa o diagnóstico e estende o sofrimento. É corriqueiro tratar arritmia cardíaca como se fosse crise de ansiedade. Sintomas comuns aos dois quadros – falta de ar, palpitações e aperto no peito – favorecem a confusão. Junte-se o fato de que as alterações no batimento cardíaco associadas ao mal-estar nem sempre aparecem no eletrocardiograma ou holter – é necessário um teste em que se avalia a parte elétrica por meio de um cateter introduzido na veia da perna. Levado até o coração, ele identifica o foco do problema (se houver) e o cauteriza. Como o exame é pouco solicitado – por ser invasivo, exigir sedativo, anestesia local em hospital –, o problema persiste. “É mais fácil culpar o doente do que aceitar nossa incapacidade de dar o diagnóstico”, admite Eduardo Saad, coordenador do Setor de Arritmias do Hospital Pró-Cardíaco, no Rio de Janeiro. “Com isso, o paciente carrega o rótulo de ‘portador da síndrome do pânico’ e são grandes as probabilidades de se considerar a doença refratária, ou seja, com sintomas que não cedem, o que requer doses mais altas de remédios.” E ainda há pacientes que ouvem do médico que lhes falta força de vontade para se curar do mal-estar emocional.

Exames medem dor?

Pessoas com dores crônicas estão particularmente sujeitas a tais distorções. “A dor é um dado subjetivo. Não existe máquina para averiguar sua veracidade”, explica Claudio Corrêa, coordenador do Centro de Dor e Neurologia Funcional do Hospital Nove de Julho, em São Paulo. Por exemplo, na fibromialgia, hipersensibilidade que acarreta dor no corpo, o diagnóstico é feito por exclusão. Os exames de imagem e de laboratório dão resultado normal e a pessoa parece bem fisicamente, embora viva se queixando. “A falta de dados objetivos e a aparência de normalidade levam parentes e até médicos a desacreditarem a dor”, afirma Corrêa.

Nesse caso, o sintoma pode ser qualificado de “psicológico”, como se fosse provocado (deliberada ou inconscientemente) e houvesse controle sobre ele. Enquanto isso, o paciente peregrina por consultórios sem obter alívio. “Recebo pessoas que ficam alegres só por eu acreditar que elas têm algo errado”, conta Corrêa. A validação traz alento para quem já começa a achar que está ficando maluco. “Ter causa indefinida não significa que a dor seja psicológica”, diz o médico, lembrando que a dor mais prevalente no mundo, a de cabeça, tem causa desconhecida em mais de 95% dos casos. “A medicina convive com a dúvida. Nem tudo tem explicação”, diz o psiquiatra gaúcho Pedro Prado Lima, presidente do 5º Congresso Brasileiro de Cérebro, Comportamento e Emoções, realizado em junho passado, em Gramado (RS). Para o médico, o mais honesto seria admitir isso em vez de apelar para a suposta origem emocional. Afinal, nem tudo é psicológico. Isso vale até para as doenças psiquiátricas. De acordo com Pedro Lima, um estudo canadense comparou ratos que foram mais lambidos pela mãe com outros privados desse contato. Na fase adulta, os dois grupos foram submetidos a stress intenso. Os animais menos lambidos desenvolveram depressão. A falta do cuidado os predispôs à doença, o que era de se esperar. Existem casos, porém, em que as pessoas desenvolvem o transtorno (além de esquizofrenia e síndrome do pânico) sem apresentar passagem trágica na sua história. Têm bom emprego, dinheiro, casamento equilibrado e mesmo assim perdem o interesse pela vida. Suspeita-se, então, de uma justificativa orgânica, um desarranjo na química cerebral. O tratamento adequado depende de um bom diagnóstico diferencial, salienta o psiquiatra. Mas aí surge outro entrave: a forma como a medicina é praticada hoje. “Não dá para fazer grandes descobertas em 15 minutos de consulta.”

O peso das emoções

Não se trata do jogo de “tudo ou nada”. Há situações em que as emoções repercutem tanto no corpo que podem provocar doenças. Veja quais são as áreas do organismo mais suscetíveis.

Sistema cardiovascular

No estressado e deprimido, o risco de infarto é 60% maior. Cresce o perigo de acidente vascular cerebral e hipertensão.

Estômago e intestino

Dos distúrbios gastrintestinais (úlcera, gastrite, prisão de ventre, intestino irritável), 80% são causados pelo emocional.

Pele

Cerca de 40% das doenças de pele em geral (caso de acne, vitiligo, psoríase, queda de cabelo e herpes) estão ligadas aos transtornos psíquicos.

Sistema imunológico

O stress estimula a produção de cortisol, que enfraquece as defesas. Resultado: cai a resistência a infecções, demonstrou o professor de psicologia Sheldon Cohen, da Universidade Carnegie Mellon, nos Estados Unidos, ao revisar 319 artigos médicos sobre o assunto. Aumentam os casos de lupus e artrite reumatoide.

Parecia síndrome do pânico

“Acordei de madrugada com o coração disparado e dificuldade para respirar como se alguém estivesse me enforcando. Fui ao médico, fiz exames cardiológicos e tudo estava normal”, conta a advogada carioca Daniela Oliveira, 38 anos. “Um mês depois, a terrível sensação voltou. Fui parar no pronto-socorro. Desde então, a taquicardia começou a se repetir quando eu menos esperava. Como meu ritmo de trabalho era intenso, eu estava me separando do marido e tinha um filho de 1 ano, os médicos diziam que era síndrome do pânico e me davam ansiolíticos. Cada um aumentava a dose do remédio, sem melhora. Tinha medo de sair à rua, passar mal e não ter a quem pedir socorro. Até que um amigo me recomendou um especialista em arritmia cardíaca. Ele indicou um exame com cateter para avaliar a atividade do meu coração. Em caso de anomalia, uma veia aberta, por exemplo, faria a cauterização no ato. Na data marcada, o plano de saúde me avisou que não pagaria o procedimento. Entrei com liminar e fiz assim mesmo. O médico detectou uma anomalia e curou na hora. Nunca mais tive nada. Como eu tomava doses cavalares de ansiolíticos, precisei reduzir aos poucos. Em dois meses, eu estava livre de tudo. Passei dois anos sofrendo e sendo tratada de maneira equivocada.”

Fonte:Claudia

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