Opinião – Dólar, o passado e o presente

09/10/2015 18:03

Nos últimos 35 anos, o Brasil balançou três vezes ao ritmo das crises cambiais.

Os jornalões e os comentaristas da “mídia eletrônica” emitem lancinantes advertências a respeito do curso do dólar. Descontados os efeitos sobre a inflação e o adiamento das viagens para Miami, nossos especialistas estão preocupados com as consequências da disparada do dólar sobre a dívida contratada pelas empresas e bancos brasileiros em moeda americana ou em euros.

Nos últimos 35 anos, o Brasil balançou três vezes ao ritmo das crises cambiais. Primeiro, a crise da dívida externa do início dos anos 1980. Sem reservas, em 1981, a queda do PIB foi de 4,3%. Depois, o colapso do câmbio semifixo de 1999. As reservas caíram de 59 bilhões de dólares em 1996 para 35,5 bilhões em 1999, com direito a um empréstimo de 40 bilhões do FMI. Finalmente, o colapso da confiança de 2015, provocado pelas avaliações catastrofistas dos funcionários dos mercados financeiros, a despeito dos 376 bilhões de dólares em reservas.

Antes e depois da crise financeira global, a dívida externa corporativa dos emergentes cresceu aceleradamente. Saltou de 4 trilhões de dólares em 2004 para 18 trilhões em 2014. Na posteridade do colapso do Lehman Brothers, afrontados por rendimentos modestos que acompanharam a inundação de liquidez nas metrópoles, os senhores da grana universal encontraram guarida nos emergentes. Ainda bafejado pelos últimos suspiros dos preços das commodities, sustentados pela reação chinesa de 2008-2009, o Brasil valeu-se, ademais, do ingresso de capitais, ainda turbinados pelo otimismo dos mercados. Recebemos a unção do investment grade.

Com um pé atrás, escrevi, ainda em 2011, no jornal Valor: é recomendável cautela e modéstia quando o ambiente internacional transita de uma conjuntura excepcionalmente favorável para outra em que prevalece a incerteza. A valorização do real e os diferenciais de taxas de juro reais incentivaram a elevação do endividamento de bancos e empresas em moeda estrangeira.

O relatório Global Financial Stability do FMI de setembro de 2015 advertiu, um tanto tardiamente: a festança do endividamento em moeda estrangeira quase sempre termina na ressaca da Quarta-Feira Cinzas, castigada pela expiação dos pecados cometidos contra os balanços de empresas, bancos, governos e famílias. Quando o pessimismo se instaura, o lixo tóxico vem à tona.

É ilusório supor que o regime de câmbio flutuante vai resistir à reversão do fluxo de capitais. Ainda pior é imaginar que uma ulterior elevação da Selic ou a utilização das reservas no mercado do dólar “pronto” vai frear os desatinos nos mercados cambiais. Dèja vu de 1998.

As análises convencionais a respeito dos fluxos financeiros internacionais ignoram completamente o papel perturbador da função reserva de valor do dinheiro na economia “monetária capitalista”. O sistema monetário internacional de nossos dias está fundado no “privilégio exorbitante” do país gestor do dinheiro universal.  As turbulências cambiais nos países de moeda não conversível, com suas graves consequências fiscais e monetárias domésticas, exibem a assimetria fundamental do sistema monetário-financeiro global ancorado na função de reserva de valor do dólar, um perigoso agente da “fuga para a liquidez”. Isso, como é sabido, submete as demais moedas nacionais às políticas monetárias dos Estados Unidos, tal como observamos agora às vésperas das reuniões do Federal Open Market Committee.

Os títulos de riqueza denominados na moeda não conversível e os carimbados com o selo da moeda-reserva são substitutos muito imperfeitos. A hierarquia de moedas determina que o dólar é mais “líquido” do que o peso argentino, o won coreano ou o real brasileiro.

No mundo da hierarquia de moedas, às políticas econômicas “internas” pouco resta além de acomodar as relações câmbio/juros para seduzir os capitais em movimento. Assim, mesmo num ambiente internacional de taxas de juro negativas, a trajetória da dívida pública está submetida, em primeiríssima instância, aos prêmios de risco exigidos pelos investidores para manter, mesmo em “situações de estabilidade”, suas carteiras carregadas com papéis denominados na moeda “emergente” não conversível.

Em tais condições, os juros reais mais elevados impõem a obtenção de superávits fiscais permanentes. Veja o leitor a combinação perversa: as taxas de juro reais mais elevadas do que as praticadas no resto do mundo impõem uma política fiscal restritiva para acomodar as expectativas dos mercados a respeito da “solvência” da dívida soberana. Tudo muito natural.

Por Luiz Gonzaga Belluzzo em Carta Capital

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