10/11/2015 00:31
Brecha na reforma política permite que empresários ”comprem” o próprio mandato
A reforma política mal acabada não impôs limite de valores para as auto-doações – as contribuições eleitorais de candidatos para a própria campanha. Nas eleições de 2014 para a Câmara, elas somaram R$ 54,8 milhões, como mostra pesquisa do Fato Online
A disputa de poder entre Congresso e STF (Supremo Tribunal Federal) – que considerou inconstitucional as doações de empresas a candidatos e partidos –, deixou uma brecha legal que permite que empresários praticamente “comprem” o próprio mandato. A reforma política não proibiu nem impôs valores máximos às autodoações, que consistem nas contribuições eleitorais de candidatos para a própria campanha. Assim, empresários poderão fazer doações para as suas campanhas como pessoa física, até o limite de 10% da renda do ano anterior. Nas eleições de 2014 para a Câmara dos Deputados, essas contribuições somaram R$ 54,8 milhões, como mostra levantamento feito pelo Fato Online a partir da base de dados do TSE (Tribunal Superior Eleitoral).
Boa parte das autodoações teve valor pequeno, mas 106 deputados colocaram mais de R$ 100 mil na própria campanha. Quarenta e três deles investiram a partir de R$ 300 mil na sua eleição. Vinte e três desembolsaram mais de R$ 500 mil. Deputados milionários colocaram mais de R$ 1 milhão no próprio caixa de campanha. Todas essas doações foram feitas como pessoa física, embora partindo de empresários – alguns megaempresários. A prática poderá ser repetida em 2018 porque o que está proibido são as doações de pessoas jurídicas.
O maior investimento foi feito pela deputada de primeiro mandato Dâmina Pereira (PMN/MG). Dois meses antes da eleição, ela substituiu o marido, Carlos Alberto Pereira, ex-prefeito de Lavras (MG), que teve a candidatura impugnada por improbidade administrativa pela Lei da Ficha Limpa. Com patrimônio declarado de R$ 38,8 milhões, ela gastou R$ 3,39 milhões na sua campanha eleitoral. Desse total, R$ 3,34 milhões – ou 98,4% – saíram da sua conta bancária. Fez 52 mil votos. Cada um custou R$ 64.
Antes da reforma política mal acabada, os candidatos com menos recursos equilibravam a disputa com os candidatos milionários porque conseguiam doações de empresas. A partir de agora, a disputa será desigual. Não haverá as doações de pessoa jurídica e o financiamento público será escasso, por meio do Fundo Partidário. Já prevendo o fim das generosas contribuições empresariais, muitas vezes com motivações escusas, como mostra a Operação Lava-Jato, o Congresso decidiu aumentar de R$ 370 milhões para R$ 867 milhões o caixa do Fundo Partidário. Quase o triplo, mas ainda ficará muito distante do total gasto em campanhas nas eleições de 2014: cerca de R$ 3 bilhões.
Fonte: TSE (Tribunal Superior Eleitoral)
Arte: Hilal Khaled/Fato Online
O tema das autodoações chegou a ser discutido dentro da comissão especial que elaborou a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) e o projeto da reforma infraconstitucional neste ano, mas não houve decisão dos integrantes para limitar o financiamento pelos próprios candidatos. Relator de uma proposta de reforma política que não foi a voto em plenário em 2013, o deputado Henrique Fontana (PT/RS) afirma que as autodoações são uma das grandes distorções do sistema político brasileiro.
“A autodoação é um problema seríssimo que deve ser corrigido o mais rápido possível”, afirmou o deputado ao Fato Online. Na visão do petista, a decisão do STF que declarou inconstitucional a contribuição empresarial para candidatos e partidos políticos poderia ser estendida também aos políticos que bancam suas próprias disputas eleitorais. Para ele, a capacidade financeira de um candidato pode atentar contra a igualdade necessária em uma eleição.
Ele entende que deve ser colocado um freio na possibilidade de o político se financiar. E aponta para o problema da atual regra. Ao estipular um percentual fixo para a contribuição, ele aumenta a desigualdade. O petista sugere, então, um limite financeiro. Desta forma, independente do patrimônio de cada um, as campanhas teriam os mesmos valores. “Do jeito que está, a lei permite que o candidato financie 100% da sua campanha”, afirmou.
Nas eleições de 2014, uma resolução do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) fixou o limite das autodoações em 50% do patrimônio declarado ao Imposto de Renda no ano anterior à eleição. Em tramitação no Senado, a PEC 113/2015, que trata reforma política, deverá entrar em breve na pauta da CCJ (Comissão de Constituição e Justiça). A lei permite hoje que a pessoa física pode fazer doações eleitorais até o limite de 10% do seu rendimento bruto declarado à Receita Federal no ano anterior. O relator da PEC, Raimundo Lira (PMDB/PB), pretende aumentar esse percentual para até 50% do rendimento bruto. Se isso ocorrer, esse será o limite inclusive para as autodoações de empresários candidatos. Limite agora previsto na Constituição.
Do jeito que está, a lei permite que o candidato financie 100% da sua campanha”, argumentou Fontana. Agência PT
Disputa desigual
Empresária do ramo turístico em Caldas Novas (GO), a deputada Magda Mofatto (PR/GO) tem patrimônio declarado de R$ 20,9 milhões. Ela bancou com o seu dinheiro R$ 2,65 milhões do total do seu caixa de campanha: R$ 4,56 milhões. Fez 118 mil votos. Questionada se as autodoações geram uma disputa desigual, respondeu de pronto: “Com certeza que é injusto, é desigual. Por isso que somos contrários à proibição das doações de empresas. Tudo na vida tem o seu gasto”.
O deputado Bonifácio de Andrada (PSDB/MG) fez uma campanha até modesta para os padrões atuais. Custou R$ 1,2 milhão. Desse valor, R$ 813 mil saíram do seu bolso. Integrante de uma linhagem de políticos que teve início com José Bonifácio de Andrada e Silva, o “Patriarca da Independência”, o deputado tem uma visão muito própria sobre as autodoações. “No regime capitalista, as pessoas não são todas iguais, são diferentes”, responde ao ser questionado sobre o tema. Ele admite que a disputa será desigual. “Isso não tem dúvida. Em qualquer país de formação capitalista, o processo eleitoral também representa forças econômicas. Quer dizer, quem não tem nenhum meio de se locomover numa eleição dificilmente vai ser candidato”.
Andrada reage, porém, a qualquer restrição à participação dos grandes empresários no processo eleitoral: “No regime democrático onde existe o predomínio do capital, tem que haver uma fiscalização para que não haja imoralidades, compra de votos, distorções no processo democrático. Mas impedir que as pessoas que tenham dinheiro disputem as eleições, aí haveria um nivelamento que não é bom para o processo democrático”.
Integrante de uma linhagem de políticos mineiros, Andrada mostra a foto do pai, José Bonifácio. Igo Estrela/ObritoNews/Fato Online
Grande empresário, Nelson Marquezelli (PTB/SP) tem patrimônio declarado de R$ 12,2 milhões. Já teve bem mais, mas passou para os filhos quase a totalidade dos bens. Ele entrou com R$ 908 mil para fechar o caixa de campanha de R$ 2,56 milhões. Reconhece que as doações próprias promovem uma situação desigual, mas vê uma saída: “Você tem razão nessa colocação. Por isso, tem que fazer um novo modelo de campanha. Na minha visão, seriam palestras, sem marqueteiro. Poderia ser até em ambientes públicos, para reduzir o custo. Sem comestíveis. Fazer almoço, jantares, isso deveria ser proibido, porque aí o cara traz o eleitor para comer. Vai voltar uma coisa de antigamente”.
Com patrimônio declarado de R$ 108 milhões, Alfredo Kaefer (PSDB/PR) fez uma campanha cara. Seu caixa eleitoral teve R$ 4,78 milhões, sendo R$ 1 milhão do próprio bolso. O custo unitário do voto ficou em R$ 58. Ele acha que os candidatos com menos recursos precisarão de algum mecanismo para se autofinanciar: “Para 2018, vão se criar mecanismos para que aquele candidato crie condições financeiras de caixa para se autofinanciar. Como foi dito, vai ser uma competição desigual em relação aos outros que precisariam de doações de campanha. Enfim, um erro estratégico de não se permitir a doação através de empresas”.
O deputado Alexandre Baldy (PSDB/GO) colocou R$ 1,12 milhão na sua campanha, que totalizou R$ 5,48 milhões. E o seu patrimônio declarado não é tão elevado, comparando com os demais empresários: R$ 4,2 milhões. Ele lembra que as autodoações são permitidas por lei. “Quem tem patrimônio, pode doar, mas isso cria distorções”, reconhece.
Em vídeo, abaixo, deputados falam sobre as doações para as próprias campanhas.
http://www.youtube.com/watch?v=zKDV7RQr5MI
Financiamento público
Sem dinheiro no bolso nem ajuda de empresários, os candidatos poderiam contar com o financiamento público de campanha, mas a reforma política feita às pressas no Congresso não prevê nem uma coisa nem outra. Bonifácio de Andrada afirma que o financiamento público poderia ser uma solução. “Eu acho o financiamento público uma coisa séria, deve ser estudado. Eu não sou contra. Tem aspectos positivos, sobretudo esse de permitir que as pessoas, de um modo geral, tenham as mesmas condições para disputar financeiramente o pleito eleitoral.”
Marquezelli é totalmente contrário à ideia. “Eu vejo com muita reserva o financiamento público. Praticamente nenhum país no mundo tem. Eu acho que o financiamento tem que ser do cidadão. Já houve um aumento considerável do Fundo Partidário. Acho que isso já dá para fazer as campanhas. Eu acho que, nas campanhas, deveriam proibir os marqueteiros. O que nós estamos vendo aí é um filme. Nessas campanhas políticas hoje quem menos fala é o candidato. Isso é um absurdo”.
A deputada Magna Mofatto é totalmente contra: “Só por conta do governo? Não tem dinheiro para isso. Vai tirar de onde? Da Saúde, da Educação”. Kaefer segue na mesma linha: “Financiamento público para os partidos políticos é um exagero neste momento, com ajuste fiscal tendo que ser feito. Com redução dos gastos do governo, do Estado, você querer aumentar a contribuição do Fundo Partidário para compensar essa deficiência que tivemos nas contribuições empresariais”. Alexandre Baldy afirma que “o Brasil não está preparado para o financiamento público”.
Doações de empresas
O fim das doações de empresas também divide os deputados milionários. Bonifácio fica um pouco dividido: “Um dos aspectos positivos é que as empresas não devem dominar o processo eleitoral. Mas, por outro lado, se não tivermos grupos que tenham meios financeiros para ajudar candidatos pobres que sejam bons elementos, eles ficam sem condições de disputar as eleições”.
Ele reconhece que havia falhas no processo. “Sempre há um certo vínculo, mas de um modo geral isso não vai pesar muito. Infelizmente, isso é do processo democrático. Os grupos econômicos às vezes doam com objetivos lícitos, porque têm simpatia por esse ou aquele candidato, mas às vezes querem participar com objetivos escusos. Querem buscar com o candidato, uma vez eleito, determinadas trocas de favores no processo legislativo.”.
Kaefer é radicalmente contra: “Eu discordo. Foi um erro grave. Nós levamos muitos anos para acabar com o caixa 2, com o submundo paralelo das campanhas. No momento em que você tira das campanhas a contribuição empresarial, você vai acabar voltando para esse submundo. É uma perda para a democracia. Há muitos candidatos que não têm apelo populista, mas são competentes, qualificados como parlamentares, e que só conseguiriam se eleger através de doações privadas e empresariais. E vão acabar ficando fora. Vão chegar no lugar deles os demagogos, os populistas, muitos sindicalistas”.
Magda Moffato faz uma ressalva: “No meu caso, não recebi foi nada. Ajudei a financiar prefeitos e vereadores, pessoas que não tinham recursos. Quando mais houver restrições para empresas doarem, mais vai haver caixa 2. A burocracia é que faz com que haja tanta corrupção”. No processo de busca de votos, ela defende os políticos: “O político nunca chega e pergunta: ‘Quanto é o voto?’. Não! É o eleitor que pede”. Ela imita um suposto eleitor: “Nessa casa, nóis é em 30 e nóis tá precisando de um milhar de tijolo, uma teia (sic) uma pareia (sic). Nóis vota tudo em você!”. “Eu sei como funciona a população brasileira”, relata a deputada.
Com a experiência de sete mandatos, Marquezelli discorda do colega milionário: “Acho certo. Lamentavelmente, as empresas não dão doações políticas, elas investem nos seus políticos. Aqueles que obtêm mais poder de fogo, têm mais penetração no Congresso, levam as maiores doações. Pressionam o Executivo para terem grandes nomeações na máquina federal, para usar o poder dessas nomeações e obter ajudas empresariais na campanha da próxima eleição. Não tem almoço de graça, tem preço. Tudo isso com a finalidade primeira de manter o poder, manter as reeleições com a ajuda de obras governamentais”.
Baldy afirma que o fim das doações “deve ser discutido”. “Da forma como foi feito, foi uma ruptura. Tinha que limitar. Agora, acabar sem tem um modelo de transição não é saudável. Pode fomentar o caixa 2”, comentou.
Por Lúcio Vaz e Mário Coelho, na coluna Luis Nassif ONLINE - Jornal GGN