Internacional – REFUGIADOS – Porque relacionar eles ao terrorismo é um equívoco

24/11/2015 17:14

Governos e políticos não podem transformar os refugiados, pessoas em busca de proteção, em bodes expiatórios para seus fracassos políticos e de segurança

A associação foi instantânea. Pouco após terroristas atacarem Paris em 13 de novembro, a entrada de refugiados na Europa passou a ser apontada nas redes sociais como o fator responsável pelo ocorrido na capital francesa. Em pouco tempo, a mídia seguiu caminho semelhante ao especular sobre militantes do Estado Islâmico – grupo jihadista que assumiu a autoria dos ataques – infiltrados entre os mais de 850 mil refugiados que chegaram ao continente pelo mar apenas neste ano.

Surgiu, então, um passaporte sírio próximo aos restos mortais de um dos responsáveis pelo ataque nas redondezas do Stade de France. O documento foi a deixa para políticos norte-americanos e europeus adotarem um discurso irresponsável que retrata refugiados (pessoas fugindo de perseguições e guerras) como terroristas.

O primeiro país a fechar as portas aos refugiados após Paris foi a Polônia. O futuro ministro de Assuntos Europeus, Konrad Szymanski, afirmou que não poderia mais aceitar as cotas obrigatórias da União Europeia (UE) acordadas em setembro para o reassentamento entre os membros do bloco de 160 mil refugiados que estavam na Grécia e na Itália. A Hungria também deve desafiar as cotas na Corte Europeia de Justiça.

Nos EUA, onde o presidente Barack Obama pretende reassentar 10 mil refugiados sírios, também há decisões polêmicas. Ao menos 31 governadores (dos quais 30 são republicanos) prometeram não aceitar os refugiados em seus estados, alegando que eles podem representar risco à população. Os advogados da Departamento de Estado, no entanto, garantem que governadores não podem legalmente bloquear o reassentamento.

O debate nos EUA tem sido marcado por equívocos graves sobre refugiados e o sistema de reassentamento norte-americano, que possui uma triagem rígida e longa,  envolvendo inúmeras agências federais e intensa checagem de antecedentes dos candidatos para garantir que criminosos não sejam beneficiados.

Os candidatos republicanos à presidência parecem ter abraçado a islamofobia. Donald Trump chegou a propor um registro obrigatório de muçulmanos nos EUA para que fossem monitorados. Ted Cruz defendeu que apenas cristãos sejam acolhidos por “não oferecem riscos de terrorismo”, mas não antes de serem aprovados em um “teste de religião”. Ben Carson, outro na disputa pela nomeação republicana, pediu que o Congresso bloqueie o financiamento de qualquer programa que vise reassentar refugiados ou migrantes da Síria.

Obama tem reagido firmemente aos ataques. Ele chamou de ”histérica” a reação de governadores, apontando que esse tipo de retórica é uma “ferramenta potente” de recrutamento para o EI. E foi enfático sobre Cruz: “Quando ouço líderes politicos sugerirem que deveria haver um teste religioso para admitir alguém fugindo de um pais destruído por uma guerra, quando alguns desses líderes vieram eles mesmos de famílias que se beneficiaram de proteção quando fugiam de perseguição política, isso é vergonhoso.” Ele se referia às famílias de Cruz e Marco Rubio que fugiram de Cuba para os EUA.

A mensagem de Obama é que líderes nacionais e globais precisam se comportar de maneira mais cautelosa em situações como os atentados em Paris. É um equívoco estabelecer conexões diretas entre os ataques na capital francesa e os refugiados na Europa por diversos motivos. O mais óbvio deles é que a vasta maioria desses refugiados vem de países afetados pelo EI, como o Iraque e a Síria. Ou seja, querem escapar dos mesmos responsáveis pelos ataques na França.

Mas há outras razões para não transformar refugiados em bodes expiatórios. As autoridades  de Grécia e França confirmaram que dois envolvidos nos ataques entraram na Europa pela ilha grega de Leros, em 3 de outubro. Eles teriam se passado por refugiados e chegado em um barco que afundou nas proximidades do arquipélago. O passaporte sírio encontrado em Paris, no entanto, era falso. Logo, ainda não se sabe  a real identidade e a nacionalidade destes homens.

Não é possível descartar que o passaporte encontrado na cena do atentado no Stade de France tenha sido deixado propositalmente como parte de uma estratégia do EI para jogar a Europa contra os refugiados. Por que um terrorista em uma missão suicida levaria esse tipo de documento para que fosse encontrado? A reação de alguns governos fechando as portas aos sírios é um exemplo de como essa hipótese é plausível.

Uma Europa ou Ocidente fechados para os refugiados é do interesse do EI. Como destaca Aaron Zelin, pesquisador de grupos jihadistas no Instituto de Washington (EUA), em pelo menos 12 ocasiões o EI criticou os refugiados por fugirem para a Europa. Segundo ele, o grupo abomina os refugiados porque eles prejudicam a mensagem de que o autoproclamado califado do EI é, em si, um refugio. Ainda que se passar por um refugiado sírio para entrar na Europa e cometer atentados pareça contradizer as crenças do grupo (de repúdio à fuga por proteção), esse ato serve para desvirtuar os verdadeiros refugiados, ajudando a atribuir a eles a culpa por ataques cometidos por militantes infiltrados.

Ainda que aceitemos que o passaporte sírio não tenha sido colocado na cena do atentado, a sua escolha pelos terroristas é, por si só, política. Passaportes iraquianos ou afegãos dariam aos terroristas praticamente as mesmas facilidades de acesso à França, visto que nacionais destes países também fogem de conflitos. Mas a Síria é o maior produtor de refugiados do mundo, além de país no qual o EI controla grandes territórios. Logo, como os sírios possuem maior facilidade para solicitarem asilo em países europeus e na América do Norte devido à situação crítica do país, usar esses documentos não é apenas uma conveniente porta de entrada ao Ocidente, mas uma forma de criar suspeitas e rejeição a todos os refugiados sírios.

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Refugiados são impedidos de entrar na Macedonia pela fronteira com a Grécia. Foto: Gabriel Bonis

É tecnicamente possível que terroristas entrem na Europa passando-se por refugiados, mas até os ataques em Paris não havia evidências contundentes de que o estavam fazendo. As autoridades europeias estavam cientes, no entanto, de que nacionais de outros países obtivessem passaportes sírios falsos para conseguir asilo na Europa, e que os próprios sírios sem documentos originais também se beneficiavam deste comércio ilegal.

O fato de que alguns terroristas se infiltraram entre refugiados não deve servir de motivação para fechar as portas a pessoas fugindo de guerras e perseguição. É preciso evitar que uma imagem ainda mais pejorativa dos refugiados se construa no Ocidente. Há décadas, a mídia conservadora europeia e políticos de extrema direita referem-se a refugiados como parasitas sociais. Não se pode permitir que agora eles também sejam retratados como terroristas quando a vasta maioria claramente não o é.

Atentados como os de Paris são extremamente sofisticados para dependerem fortemente de militantes vindos de areas controlas pelo EI. O grupo jihadista declarou que selecionou ”cuidadosamente” os locais a serem atacados, além de coordenar os atentados. Naquele dia, a capital francesa recebia uma partida de futebol entre Alemanha e França, com a presença do presidente francês, François Hollande, no estádio. Logo, a escolha da data envolveu um planejamento considerável e dependente em sua maioria de cidadãos europeus que viviam no continente, conforme indicam as investigações.

Supor que os ataques na capital francesa dependeriam de militantes que entraram na Europa pela Grécia após enfrentarem uma arriscada travessia no Mar Egeu em um barco precário é, no mínimo, equivocado. Esses militantes poderiam ter se afogado e comprometido a operação se fossem realmente valiosos. Crer na relevância tática dos dois terroristas que se passaram por refugiados seria subestimar a capacidade organizacional de um grupo com vastos recursos e sua elevada eficiência no recrutamento de radicais dentro da própria Europa.

Além disso, há formas mais “seguras”, embora com risco maior de captura, de trazer militantes relevantes e treinados no exterior para a UE. Uma delas é utilizar identidades europeias falsas na travessia por terra entre a Turquia e a Bulgária, por exemplo. Esses documentos podem custar até €3 mil, conforme o Guardian destaca.

Esse é um expediente usado com frequência por migrantes econômicos e refugiados. O documentário “Sonhando com a Democracia” (Dreaming of Democracy, em inglês), do refugiado e jornalista iraniano Morteza Jafari, mostra, por exemplo, como refugiados tentam sair da Grécia para locais como Alemanha com documentos falsos. Terroristas podem fazer o mesmo, com exceção daqueles nos mais elevados escalões que poderiam ser identificados mais facilmente.

Não se deve desviar o foco do problema mais grave evidenciado pelos atentados em Paris para os refugiados. Os ataques deixam clara a incapacidade crônica de governos europeus em proteger seus cidadãos e de trabalhar em conjunto para identificar potenciais ameaças e terroristas. As autoridades belgas sabiam, por exemplo, que Bilal Hadfi, um francês de 20 anos que detonou um colete suicida no Stade de France, havia se juntado ao EI na Síria. Mas não tinham conhecimento de que ele havia retornado à Europa (e de como ele o fez).

Se as autoridades de um país da UE sabiam que Hadfi havia se radicalizado, deveriam ter adotado providências para facilitar a sua identificação em um provável retorno à Europa. Ainda não há informações sobre como ele voltou ao continente, mas se o fez passando-se por um refugiado, isso seria mais um prova da vulnerabilidade das fronteiras da UE para criminosos.

O Guardin reportou que nas ilhas gregas, por onde a maior parte dos refugiados entra na Europa, essas pessoas apenas apresentam uma forma de identificação e são autorizadas a ir para o continente sem terem seus antecedentes checados. Desde outubro, todos os que chegam têm suas impressões digitais coletadas e armazenadas em um banco de dados com acesso para todos os membros da EU, mas não há tempo ou recursos para fazer uma checagem ou avaliação mais profunda sobre se alguns refugiados pertencem a grupos jihadistas.

refugiados nao sao terroristas1Refugiados chegam à Grecia. Foto: BULENT KILIC / AFP

Governos europeus como os de Polônia e Hungria, entre outros, não deveriam perder tempo questionando a entrada de refugiados, mas ajudar a garantir maior suporte técnico, profissional e financeiro à Grécia e Itália. Desta forma, esses países estariam melhor posicionados para identificar potenciais militantes infiltrados entre refugiados. Ora, é evidente que as impressões digitais de um terrorista como Hadfi deveriam estar em um banco de dados europeu para na eventual situação de ele tentar retomar à Europa, por exemplo, entre os refugiados, ele pudesse ser identificado instantaneamente.

Os governos europeus tem sido ineficientes em detectar as atividades e a movimentação de radicais no continente e no exterior. Na última semana, a polícia francesa matou o marroquino-belga Abdelhamid Abaaoud, de 28 anos, apontado pelas autoridades como o mentor dos ataques em Paris. Entretanto, até a sua eliminação, mesmo sendo um dos recrutadores de maior perfil do EI na Europa, o governo francês acreditava que ele estivesse na Síria. Em 2013, ele teria escapado de uma busca na Bélgica.

O ministro do Interior francês, Bernard Cazeneuve, disse que o extremista de 27 anos estava envolvido também em quatro de seis planos de atentados desmontados pela inteligência francesa apenas em 2015. Parece surreal que, ainda assim, as autoridades não soubessem que ele estava na Europa.

A Bélgica se tornou um território com grupos jihadistas bem desenvolvidos e a maior fonte percapita de militantes do EI na Síria. Inúmeros planos de ataques terroristas na Europa e no exterior foram conectados ao país, incluindo os ataques de Paris. Ao menos três dos suspeitos viviam lá. O distrito de Molenbeek, na capital Bruxelas, por exemplo, está conectado a diversos planos prévios de atentados. E o ministro do Interior belga, Jan Jambon, admite que o governo  não tem controle daquela região.

Um país admite não controlar uma área na cidade sede da UE, onde atentados terroristas são planejados, e governos do continente e políticos nos EUA reverberam sobre a culpa dos atentados estar relacionada aos refugiados. Essa é uma estratégica diversionista, simplista e cínica para esconder sua incapacidade de enfrentar ao mesmo tempo ameaças de segurança e a maior crise humanitária desde a Segunda Guerra Mundial.

Ainda que se comprove a infiltração de terroristas entre refugiados, cabe aos governos identifica-los sem que fronteiras sejam fechadas àqueles em busca de proteção apenas porque as autoridades são incapazes de lidar com o problema de forma eficiente. Terroristas podem se infiltrar em qualquer ambiente, desde que exista vantagem para tal. Todos os terroristas responsáveis pelos ataques de 11 de setembro de 2001 estavam nos EUA com vistos legais emitidos pelo governo norte-americano. Não havia refugiados para culpar naquele momento.

 

por Gabriel Bones no Blog Politike
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