03/05/2016 13:38
”A deslealdade de Temer e o fisiologismo do PMDB reforçam o nojo da população pela chamada velha política. O presidencialismo de coalizão acabou.”
Agosto de 1954. Sitiado pelo Parlamento, pressionado pelos barões do PIB e traído pelo vice Café Filho, Getúlio Vargas move sua última peça no tabuleiro e vira o jogo. Seu tiro no peito muda o desfecho da história. Ganha o jogo, mas perde a vida. Preço elevadíssimo.
Agosto de 2014. Uma varguista planta a semente que a derrubará depois. Mente na campanha eleitoral e promete o oposto que faria em seus primeiros dias de governo. Ganha as eleições, “mas ganha perdendo” como diria Marina Silva. Perde a credibilidade e governabilidade.
Agosto de 2064. Os livros de história do Brasil ensinam nas escolas secundárias que, na transição do início do século, o Brasil teve três vice-presidentes que assumiram no lugar dos eleitos. Sarney, como tragédia. Itamar, como incógnita. Temer, como conspiração.
O Brasil vive a mais dramática crise política e econômica da Nova República. Além da incapacidade de liderança da presidente, nunca vimos um vice-presidente se mover com tanta desenvoltura para chegar aonde nunca chegaria pelo voto popular. A economia sofre as consequências de seguidos erros primários do governo Dilma. A deslealdade de Temer e o fisiologismo do PMDB reforçam o nojo da população pela chamada velha política. O presidencialismo de coalizão acabou.
A causa principal da explosão do nosso sistema de governo foi a Operação Lava Jato. O frágil equilíbrio de incentivos centrífugos do desenho partidário-eleitoral brasileiro foi mantido na presença de duas condições: liderança forte e métodos corruptos na construção de maiorias parlamentares. A liderança de FHC e Lula, aliado ao fatiamento do Estado, providenciou estabilidade à um presidencialismo onde o partido do presidente nunca ultrapassou 20% dos eleitos no Parlamento. Isso faz parte do passado. A ausência de liderança de Dilma e o revelação das entranhas da corrupção, feita pela Lava Jato, enterraram esta fase da política nacional.
A crise atual revela a disputa entre os atores políticos sobre a construção do próximo equilíbrio institucional. A continuidade de facto da Lava Jato representa a única força capaz de moldar nova arquitetura político-eleitoral através da implosão do sistema político atual. Por isso, os atores políticos se movem para acabá-la. Neste tabuleiro, não cabem jogadores amadores como a presidente Dilma. O jogo é de gente grande. De um lado, o PT com o presidente do Senado. De outro lado, o PMDB com o presidente da Câmara. Ambos denunciados pela Lava Jato.
Proponho uma tese para explicar o momento atual e uma saída para a crise. A tese é que a eleição indireta de Temer – pois é disso que se trata – é movida, principalmente, pela tentativa de reverter as poucas mudanças institucionais que a Lava Jato trouxe, como por exemplo, o julgamento da ADI 4650 e do HC 126292 pelo Supremo Tribunal Federal. Ao julgar esses casos, o STF proibiu o financiamento empresarial nas eleições e autorizou o início da execução penal a partir de decisões colegiadas de segunda instância. Foi apenas o caráter ambíguo e não-explicito do texto constitucional acerca destes pontos que permitiu o STF decidir desta forma. Essas decisões representam mudanças reais em relação às causas da corrupção eleitoral e da impunidade do andar de cima, e não aconteceriam sem as revelações da Lava Jato.
O governo Temer representa uma real ameaça para a Lava Jato. Não que o governo atual não tente interferir na Lava Jato, mas não possui força para isso. A coalização de forças do novo governo, derrotada na última eleição, reverterá estas decisões do STF. Além de “reorientar as prioridades da Polícia federal”, proporá emenda à constituição para eliminar as lacunas que permitiram esta interpretação da suprema corte. Este é o jogo que está sendo jogado – e por jogadores profissionais. Apesar da angustiante situação econômico e social, o principal objetivo da sociedade brasileira neste momento precisa ser preservar a Lava Jato. Por sua vez, a Lava Jato poderia ajudar os seus defensores ao garantir seu caráter imparcial. Investigar a todos, sem direcionamentos, é condição de sua respeitabilidade. Por muito menos, o STJ anulou a Castelo de Areia.
A saída para a crise passa pela convocação, pela presidente Dilma, de pronunciamento oficial à nação brasileira. Para tal pronunciamento ser crível, precisa ocorrer antes da votação da admissibilidade do impeachment pelo Senado Federal. Nele a presidente deveria propor: “Frente ao momento dramático vivido pelo Brasil, reconheço que perdi as condições de governar e que meu governo cometeu diversos erros. Proponho, então, renunciar ao cargo de presidente da república, desde que seja uma renúncia assinada conjuntamente por mim e pelo vice-presidente, para devolver ao povo brasileiro a soberania nesta transição”. Como Vargas, dará um xeque-mate nos seus opositores, porém sem pagar aquele preço. A renúncia dupla que convoca automaticamente novas eleições, como já defendido inclusive em editorial da Folha de São Paulo, é a melhor solução para a crise atual. Primeiro, frente à renúncia dupla, inexiste polêmica em relação à constitucionalidade de novas eleições. Segundo, a negação do vice-presidente à proposta produzirá a evidência de sua real intenção. Terceiro, devolverá ao povo – detentor da soberania popular – a possibilidade de proteger a democracia brasileira das investidas da oligarquia política nacional. Terão nossos líderes a ousadia e desprendimento que o momento exige?
Artigo publicado originalmente no site O Globo - Blog do Noblat