Análise – ”Todo impeachment é, no seu mais alto grau, político”, diz Analista

10/08/2016 15:25

Dilma vira ré em processo que mistura a liturgia jurídica com a essência política. Para Carlos Melo, do Insper, ‘feição criminal’ do processo ‘mascara intenções’, mas faz parte do jogo

Por 59 votos a 21, o Senado decidiu nesta terça-feira (9) tornar ré por crime de responsabilidade a presidente afastada Dilma Rousseff. A petista será julgada agora pelos mesmos senadores, numa nova sessão presidida pelo ministro do Supremo Ricardo Lewandowski programada para ocorrer no dia 25 de agosto.

Se derrotada mais uma vez em plenário, a petista se converte na segunda presidente do Brasil a sofrer impeachment em 24 anos. Antes dela, Fernando Collor de Mello também foi destituído do cargo, em 1992. Hoje, ele é senador pelo PTC de Alagoas.

O processo de Dilma envolve acusações concretas de “crime de responsabilidade”. Seu julgamento tem elementos jurídicos, como o fato de a sessão plenária ser presidida por um juiz e ela mesma ser representada por um advogado de defesa, o ex-ministro da Justiça José Eduardo Cardozo. Apesar disso, Dilma não está diante de uma corte, mas de um grupo de políticos, como ela.

Para entender o que há de político e de jurídico nesse longo processo, a reportagem ouviu o cientista político Carlos Melo, do Insper (Instituto de Pesquisa e Ensino Superior).

O processo que Dilma enfrenta é jurídico ou político?

CARLOS MELO Todo processo de impeachment é, no seu mais alto grau, político. Basta adotar um raciocínio inverso para se compreender: há ocasiões em que abundam indícios e mesmo provas de crimes, mas pedidos de impeachment não prosperam; não são levados adiante simplesmente porque não há vontade política para isso. Os petistas ficam indignados com isso, mas antes de tudo está a força política, a correlação de forças, o jogo político. Se pudessem destituir alguns governantes pelos mesmos argumentos que hoje Dilma é destituída, o fariam; é uma questão de ter ou não força para isso.

Todavia, a mera determinação política de afastar um governante também não basta; a população, o eleitor, no final das contas, é o termômetro e o árbitro dos limites. Impeachments ou a sua reversão, sem povo nas ruas, não existe. Num determinado momento, como ocorreu no Brasil, a contabilidade mais decisiva é mesmo quem coloca mais ou menos gente nas praças. Nesse ponto, a oposição venceu e o PT, após 12 anos no poder não foi capaz de mobilizar e nem garantir módicos 171 votos a favor de Dilma [na Câmara].

Mas, no teatro da política, justificativas jurídicas, em algum grau, sempre serão necessárias. O impeachment passa a ser um processo político em busca de elementos e justificativas jurídicas que o fundamentem e lhe deem feição criminal ou, pelo menos, mascarem as intenções políticas. A oposição canta ‘me dê motivos para te mandar embora’.

Não sou jurista para definir se o caso de Dilma Rousseff é além de político também jurídico. Independente da decisão política do Senado, penso que essa polêmica nos perseguirá por vários anos. Contudo, parece-me que há elementos, argumentos e narrativas que buscam dar sustentação jurídica ao processo político. Objetivamente, houve pedaladas, houve transgressões às leis orçamentárias e de responsabilidade fiscal no país. Culpa de Dilma, de seus auxiliares, culpa de ninguém? O Senado é uma casa política e politicamente dá seu veredito.

Desde que Dilma foi afastada, em maio, vieram à tona revelações que enfraqueceram os argumentos técnicos que embasam o impeachment. O sr. acha provável que essas novas informações sejam levadas em conta tecnicamente pelos senadores? Por quê?

CARLOS MELO Pelos motivos que apontei, acho pouco provável. Dilma já foi julgada e condenada politicamente. Por sinal, até mesmo pelo PT, que lhe tem desprestigiado. Dilma, hoje, está só, encenando um espetáculo um tanto grotesco em seu temporário Palácio do Alvorada. Desde seu afastamento, a maior polarização política que conseguiu expressar foi se teria ou não direito ao avião presidencial. Vive o ostracismo oficial, que antecederá o ostracismo de fato, após a decisão terminal do Senado. Logo, sua capacidade de reagir é diminuta.

E a possibilidade de reverter votos com argumentos técnicos me parece menor ainda. Senadores são políticos e, com isso, seus gestos são politicamente orientados. Por que salvariam uma presidente a quem o próprio partido abandonou? Mais, por que restituiriam seu poder se ela mesmo já indica que consultaria a população para a realização de novas eleições – para esses mesmos senadores, inclusive? Uma turbulência fantástica que, certamente, não agrada a ninguém hoje detentor de mandato.

Ademais, alguém já se pôs a imaginar no cenário de uma hipotética volta de Dilma? Como reagiriam os agentes econômicos; que destino teriam indicadores como dólar, bolsa e juros? Esse presumido caos afugenta qualquer convicção jurídica possível. Políticos adaptam meios a fins; agem pela ética da responsabilidade em relação aos propósitos e ao poder que eles mesmos expressam.

Temer tem avaliação positiva de 14% dos brasileiros. Dilma tinha de 13% quando foi afastada. Como o sr. interpreta essa rejeição tão similar entre dois antagonistas tão fortes?

CARLOS MELO Apenas num nível mais elementar Dilma e Temer são assim tão antagonistas como você aponta. Num nível mais elevado, ambos expressam o mesmo desgaste do sistema político nacional; o colapso de atores e partidos, incapazes de representar o eleitorado, a população em geral. Um estilo de fazer política que se esgotou e cansou a quem não está diretamente vinculado ao poder estabelecido, aos mandatos, aos partidos; quem não depende disso para viver.

Além disso, ninguém foi à rua para passar o poder a Temer; foram, antes, para destituir Dilma. Temer foi contingencial; veio no pacote do impeachment. Não foi escolha; foi o preço. Tampouco Temer, nesses dias de interinidade conseguiu consolidar uma aura de diferenciação política: assim como Dilma, falta-lhe a empatia, o carisma, a capacidade de comunicação com a população; numa palavra, a liderança.

Acresce a isto que a troca de PT por PMDB não traz ganho moral algum: ambos tornaram-se estruturas viciadas nos mesmos métodos; ambos assumiram o mesmo padrão mental no entendimento e no trato do sistema político brasileiro. Não à toa, estão igualmente envolvidos nos escândalos da Lava Jato e de operações congêneres. Mesmo que seja inconscientemente, a população percebe ou ao menos intui isto. Se me permite dois clichês: PT e PMDB se tornaram ‘farinha do mesmo saco’ e tanto Temer como Dilma, ‘faces da mesma moeda’. Não causa estranhamento.

A julgar pelo Datafolha, a maioria dos brasileiros prefere que Dilma e Temer se afastem, e que sejam antecipadas as eleições presidenciais. É improvável, entretanto, que isso aconteça. Como explicar essa aparente desconexão da democracia?

CARLOS MELO É preciso reconhecer que a democracia tem expressado certa crise em todo o planeta. Nas últimas três décadas, a sociedade se transformou numa velocidade estonteante: na tecnologia, nos costumes, na liberdade dos indivíduos, na economia; na política quando compreendemos a política como algo mais amplo: o campo dos valores, do comportamento, da autonomia dos indivíduos. Acontece que os sistemas políticos não compreenderam essas transformações, ainda; e se compreenderam, não conseguiram desenhar novas formas de organização e representação política.

Com efeito, as pesquisas apontam que a população quer novas eleições. Mas, quer novas eleições com os mesmos candidatos? Ninguém se destaca para além dos currais ou seguimentos políticos e sociais que já dominavam: Lula é abraçado pelo petismo renitente; Marina pelos mesmos 20% que detém desde 2010. Serra, Aécio, Alckmin … Depois de tanto tempo no palco e de tanta visibilidade parecem declinantes. O cardápio, nesse sentido, é manjado e provoca certo fastio. É como o sujeito que tem fome, abre e fecha a geladeira, mas nada o contenta. Continuará com fome; uma comichão e, ao mesmo tempo, um vazio.

É inevitável a comparação com o impeachment de Collor, o antecedente mais próximo e familiar da situação que vivemos hoje. O que há de semelhante e de diferente nos dois casos?

CARLOS MELO Superficialmente, poderíamos dar voltas em torno da questão da corrupção. Acho que esta chave explicativa é mais fraca, defrontada com outras questões. A corrupção talvez tenha se institucionalizado mais na era petista – afinal, foram 12 anos. Mas, nesse sentido as índoles de Collor e de Dilma parecem guardar muita diferença. Penso não ser justo compará-los.

De semelhante, parece-me mais determinante o estilo autocrático e a personalidade autoritária de ambos; a soberba, a autossuficiência irresponsável que expressam. Ela, tecnocrata; ele, um pretenso aristocrata. Compreenderam a duras penas que os milhões de votos da eleição presidencial não bastam; o poder no Brasil é mesmo compartilhado; é preciso compor, no Congresso e na sociedade; é preciso somar, e os dois, cada um a seu modo, se dedicaram em dividir.

Há, no entanto, formas e formas de compor. Por exemplo, sujeitar o Congresso ao poder imperial do presidente não dá certo; foi o que fez Collor, com seu temperamento e, reconheçamos, sua capacidade de comunicação; sua habilidade em manipular símbolos. Todavia, o ex-presidente enfrentou um Congresso qualitativamente superior ao com que Dilma se deparou; mais maduro, experiente e eticamente menos controverso: havia lideranças do calibre de Ulysses Guimarães, Mário Covas, Fernando Henrique, Ibsen Pinheiro; José Dirceu, José Genoíno e Luís Gushiken – todos em grande momento, no auge – certamente para os petistas que mencionei.

Já Dilma, de natureza ética distinta em relação a Collor, mas também muito menos talentosa, imaginou-se capaz de controlar o Congresso pelo auxílio exclusivo do fisiologismo; do loteamento, da distribuição de cargos e verbas. Deu certo durante tempo áureo de arrecadações crescentes e expansionismo fiscal. O Congresso aviltou-se e o Executivo preponderou. Quando os recursos se esgotaram, no entanto, o controle do governo derreteu e o resto da história é mais que conhecido.

 

Por João Paulo Charleaux no Nexo Jornal