Opinião – A barbárie dos fatos

22/03/2017 21:21

”Não sei como fechar este artigo, confesso. Por isso, corro até um texto de Paul Valéry, “Prefácio às Cartas Persas de Montesquieu”, em que ele fala sobre algo parecido com o que vivemos.”

Um espectro ronda o mundo atual: a caretice. Fala-se em esquerda, direita, globalização e exclusão, mas ninguém menciona a pavorosa caretice que assola o mundo. Isso. A caretice é um rosto imóvel, é a contemplação insensível do mal, é a falta de compaixão, é a hipocrisia oculta atrás de sorrisos e lágrimas. É também o elogio da ignorância como ideologia: não sei nada, logo existo.

Fala-se muito sobre a volta do populismo, do nacionalismo burro, da luta contra a democracia.

Mas nos corações e mentes há um fundo desejo de imobilidade, por uma vida paralisada.

Há nos “neocaretas” sérios sintomas de origem sexual, psicopatia, arrogância da estupidez.

Vejam as pavorosas caras dos eleitores do Trump e dos membros de seu gabinete, todos velhos, com as fuças mortas, negando a vida real. Vejam a desgraça da Inglaterra com a velharia estúpida escolhendo a saída da UE. Esse bufão é o retrato caricatural da estupidez e da crueldade do Partido Republicano, que virou o inimigo interno do próprio país. Ele é o homem-bomba da América. É o rei da caretice criminosa, e a caretice é a grande ameaça. Não é esquerda nem direita – é a bosta. Mesmo a internet, com sua cornucópia de bilhões de tuítes, pode levar a uma realidade sem a dúvida, ao “pós tudo”, que pode resultar em nada.

Eu estava em Londres em 1967, quando saiu o disco dos Beatles “Sargent Pep-pers”, e me lembro de que Kings Road era uma espécie de comício dissolvido nos olhares, uma palavra de ordem flutuando no vento, “Blowing in the Wind”, como cantava o Bob Dylan. O mundo careta tremia, ameaçado pelo perigo do comunismo e pela alegre descrença que os hippies traziam. O capitalismo rosnava de humilhação, condenado como sistema injusto de produção e como repressor da sexualidade.

Depois, com o fim da Guerra Fria, parecia que os Estados Unidos iam derramar pelo mundo seu melhor lado, generoso, autocrítico, modernizador. A liberdade parecia uma necessidade de mercado.

A ideia de “um”, da “totalidade”, tinha se provado impossível. E isso seria o “novo”, o modo contemporâneo de se ver a vida social, uma forma mais profunda e complexa de pensamento que desse conta da circularidade do tempo. Debalde (sempre quis escrever essa palavra…).

As pessoas nunca suportaram bem a dúvida, não suportaram o múltiplo, o indizível, o incontrolável, a impotência “democrática”. A ideia de “fragmentário” gera angústia, porque lembra a morte. Todo pensamento (todo “Bem”) aspira ao Todo. O sonho do “Bem” está milenarmente ligado à ideia de totalidade. Pensamos com o corpo, queremos que o mundo seja um “todo harmônico”, como o nosso organismo.

O mundo ocidental parecia estar lindamente “condenado” à democracia, à multilateralidade, à tolerância. Mas não era esse o desejo dos caretas republicanos que hoje estão na Casa Branca. Essa máfia de psicopatas queria vingar-se do desprezo que sofreram nos anos 60, vingar-se do vexame de Nixon e Watergate, vingar-se dos Beatles, dos Rolling Stones, de Marcuse, de Dylan, da arte, dos negros, das mulheres livres, e, principalmente, da liberdade sexual que sempre odiaram. Imaginem Trump diante de um Picasso.

Osama bin Laden provocou o acontecimento mais fragoroso no 11 de Setembro e legitimou a paranoia dos caretas que depois tomaram o poder. A caretice ganhou vida nova com o ataque a NY.

Hoje, um dos piores homens do mundo governa a América. E deu voz à multidão de boçais que povoam os EUA. Isso é a coisa mais grave que atingiu o Ocidente em décadas.

O mundo está tão louco que as pessoas querem ficar no passado de um futuro que não conhecem.

Por que viver? Não há mais certezas que nos possam consolar. Não há mais o sonho de vitória, de verdade, de mentira, de coragem. Não há mais o indivíduo que sonha e encontra visões para um futuro. As questões estão cada vez mais misturadas, indistintas, equivalentes. As informações proliferam sem conclusão. Surge no mundo um grande pensamento sem cérebros. Uma ventania digital que unifica tudo em uma infinita chuva de informações, que não produzem subjetividades. Lembro-me sempre de um filme antigo, “O Planeta Proibido”, de Fred Wilcox, de 1956, segundo o qual tinha existido uma civilização, os “Krells”, que deixou como herança apenas um imenso cérebro eletrônico, em que estavam guardadas todas as ideias de sua história. E todos sumiram. Parece hoje.

A única maneira de se individuar é viver em vazios, em avessos, em células de resistência diante do império dos fatos. Melhor dizendo, em células de desistência. Agora, os novos progressistas não sonham mais com o “absoluto”; sonham com o relativo. Aceitamos o mundo cada vez mais como algo irremediável. O “absurdismo” dos anos 50 e anos 60 agora é aceito como o “novo normal”. Se antes a “alienação” era um pecado, hoje é aquilo que se deseja alcançar.

Não sei como fechar este artigo, confesso. Por isso, corro até um texto de Paul Valéry, “Prefácio às Cartas Persas de Montesquieu”, em que ele fala sobre algo parecido com o que vivemos.

Ele diz que uma sociedade cresce em geral da barbárie para a ordem. E diz também que a barbárie é o império dos fatos e, se é assim, a ordem precisa do império de ficções. A ordem exige a presença das coisas ausentes, o desejo pelas coisas ainda vagas, assim alcançando um equilíbrio em busca de algum ideal.

Estamos esmagados por excesso de fatos. Paul Valéry também diz que uma sociedade que tenha eliminado tudo que é vago e impreciso ou irracional, além do mensurável e verificável, talvez não possa subsistir.

Seria um novo tipo de barbárie – uma barbárie entendida como progresso, mas sendo apenas o inferno dos fatos –, a barbárie dos fatos, a barbárie digital.

 


Por Arnaldo Jabor
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