Opinião – 30 anos de crise

05/10/2018 16:08

”Ao declarar que o PT se mobiliza para a conquista do poder, José Dirceu deixou claro haver um golpe em preparação. É impossível saber se teria força para fazê-lo vitorioso”

No dia 5 de outubro de 1988, após acompanhar a cerimônia de promulgação presidida pelo Dr. Ulysses Guimarães, profetizou o presidente José Sarney “com saber só de experiências feito” (Os Lusíadas, canto xcIv): “com esta Constituição o País é ingovernável”.

O tempo lhe deu razão. Redigida por medalhões, coadjuvados pelo baixo clero iletrado, a Lei Fundamental fracassou como instrumento de reconstrução do Estado democrático “destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”, como está escrito no Preâmbulo.

Com dois ex-presidentes cassados, um encarcerado por corrupção ativa e passiva, interminável rol de ministros, senadores, deputados federais, governadores, deputados estaduais, prefeitos, vereadores, grandes e médios empresários e doleiros, apanhados na operação lava jato ou algumas das ramificações, além de milhares que escaparam às malhas da lei, é impossível acreditar que a redemocratização tenha sido bem sucedida. Há que se considerar, também, o drama de 13 milhões de desempregados crônicos, de 30 ou mais milhões no mercado informal de trabalho, de 50 milhões sobrevivendo abaixo da linha da miséria, e de milhares de empresas vítimas da insegurança jurídica.

Diariamente contestada, a Constituição não encontra quem a defenda. Propaga-se a necessidade da eleição de assembleia constituinte exclusiva, ou da entrega da tarefa de preparar texto base a grupo de juristas, para ser submetido a referendo popular. Outros sugerem que o Congresso lhe imponha radical lipoaspiração.

Por que razões, eu me pergunto, o povo é indiferente à Lei Fundamental? A primeira, outorgada por D. Pedro I, vigorou 65 anos, superou a crise da Abdicação em 1831, o período da Regência, a guerra do Paraguai, para ser abatida em 15/11/1889, com a proclamação da República. A segunda, promulgada em 1891, vigeu 40 anos, até ser derrubada pela Revolução de 1930. Com a Constituição de 1934 inicia-se o período mais tormentoso da República. No breve espaço de 50 anos o Brasil conheceu 5 constituições, das quais 3 com raízes autoritárias.

Quais as determinantes de tanta instabilidade? A pergunta deve ser respondida por cientistas políticos e historiadores. Não me furtarei, porém, ao trabalho de formular hipóteses, relendo o texto constitucional. Os primeiros guardiões da Constituição são o presidente e o vice-presidente da República. No ato de posse, por determinação do artigo 78, prestarão o compromisso solene de cumpri-la, defendê-la e “observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil”. Segue-se o Supremo Tribunal Federal (STF). Prescreve o artigo 102 competir-lhe, precipuamente, a guarda da Constituição. Para fazê-lo dispõe o STF de armas onde se sobressaem a ação direta de inconstitucionalidade, a ação declaratória de constitucionalidade e o recurso extraordinário (inciso I, letra a, e inciso III). Como órgão do Poder Judiciário o STF não age por iniciativa própria. Deve ser acionado. Se não o for, permanecerá inerte. Uma terceira linha de defesa é integrada pelas Forças Armadas, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, destinando-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e da lei e da ordem, desde que acionado por um dos três poderes (artigo 142).

Sendo tão protegida, por que, em momentos de crise aguda, revela-se vulnerável? Relembre-se que das 8 constituições 7 foram paridas por revoluções ou algum tipo de golpe. Apenas a de 1988 é fruto de arranjos articulados nos bastidores da Assembleia Nacional Constituinte, onde nasceu como promessa de oferecer ao povo um país rico e feliz.

Poder é a capacidade que uma unidade política de impor sua vontade aos demais”, ensina Raymond Aron em Paz e Guerra entre as nações (Ed. WMF Martins Fontes, pág. 57). Não há poder quando inexiste força capaz de sustentá-lo. Após o suicídio de Getúlio Vargas em agosto de 1954, ao ser impedido de assumir a presidência da República pelo Ministro da Guerra Gal. Teixeira Lott, o vice-presidente Café Filho invocou a Constituição de 1946 em mandado de segurança impetrado no STF. Do julgamento que lhe denegou o pedido, destaca-se o voto do ministro Nelson Hungria, do qual transcrevo este trecho: “Contra uma insurreição pelas armas, coroada de êxito, somente valerá uma contrainsurreição com maior força. E esta, positivamente, não pode ser feita pelo Supremo Tribunal, posto que este não iria cometer a ingenuidade de, numa inócua declaração de princípios, expedir mandado para cessar a insurreição. Aí está o nó górdio que o Poder Judiciário não pode cortar, pois não dispõe da espada de Alexandre” (Grandes Julgamentos, Ministro Edgard Costa, Ed. Civilização Brasileira, 1964, 3º vol., 397).

Ao declarar que o PT se mobiliza para a conquista do poder, José Dirceu deixou claro haver um golpe em preparação. É impossível saber se teria força para fazê-lo vitorioso. Recomendo a leitura de “Dez dias que abalaram o mundo” de John Reed, relatando como Lenine implantou o comunismo na Rússia em 1917, e da recente obra “Como as democracias morrem”, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt (Ed. Zahar, 2018), onde se lê: “Desde o final da Guerra Fria a maior parte dos colapsos democráticos não foi causada por generais e soldados, mas pelos próprios governos eleitos” (…) O retrocesso democrático hoje começa nas urnas” (pág. 16).

A democracia brasileira vive momentos de expectativa e crise. Lembremo-nos da Bolívia de Evo Morales, e da Venezuela de Hugo Chaves e Nicolás Maduro, ditadores admirados por Lula, José Dirceu e Haddad.

 

 

 

Por Almir Pazzianotto Pinto é advogado. Foi Ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho.