06/06/2019 18:01
”Nada mais triste do que essa falsa visão de modernidade, hoje agravada pela fúria do acesso aos computadores de qualquer maneira”
Estamos vivendo tempos sombrios em matéria de qualidade do ensino, em nosso país, especialmente se considerarmos a educação pública. Os resultados são catastróficos. Houve queda no desempenho em matemática. Na redação foi pior ainda. Vamos caminhando para o fundo do poço. Ou seja, são estudantes que concluíram o ensino médio, sabe-se lá Deus como, mas padecem dos males do analfabetismo funcional. São incapazes de raciocínios elementares. O que se pode esperar dessa geração?
A conclusão é óbvia: sem leitura, como escrever adequadamente?
Em famoso pensamento de Peirce, temos o entendimento de que o pensamento não está em nós, nós é que estamos em pensamento.
Desde os primórdios da humanidade, buscam-se explicações para o processo do conhecimento humano. Muito cedo, pensadores da antiguidade formularam hipóteses e geraram teorias que definiam a expressão humana como um processo representativo de suas formas de ver o mundo. Assim descobriram o signo, conceituaram-no e o decompuseram na intenção de, desta forma, compreender o conhecimento humano.
Concluíram então que, independentemente do instrumental usado, o homem manifesta suas ideias por meio de estruturações sígnicas em forma de linguagens. Deduziram do signo ora dois ora três componentes, mantendo, não obstante, significante e significado como integrantes indispensáveis à composição dessa entidade semiótica.
Considerando-se a língua como matéria-prima das interações sociais, verifica-se que, entre os signos, o linguístico (ou verbal) ocupa espaço privilegiado. A despeito de sua complexidade, é o signo linguístico que se impõe como domínio obrigatório e, em geral, impele o indivíduo a buscar a escola: espaço onde se aprende a ler, escrever e contar.
Qualquer um pode descobrir pela auto-observação que existem várias espécies de leitura, em algumas das quais não chegamos a compreender o que é lido. Quando estou lendo provas com a intenção de prestar atenção especial às imagens visuais das letras e de outros sinais tipográficos, o sentido do que leio me escapa tão inteiramente, que tenho de ler todas as provas novamente de maneira especial, se quiser corrigir o estilo.
Quando, por outro lado, leio um livro que me interessa, um romance, por exemplo, desprezo todos os erros de impressão; e pode acontecer que os nomes das personagens deixem apenas uma impressão confusa em minha mente – uma recordação, talvez, de que são longos ou curtos, ou contêm alguma letra inusitada, como um ‘x’ ou um ‘z’.
Quando tenho de ler em voz alta, e tenho de prestar particular atenção às imagens sonoras de minhas palavras e aos intervalos entre elas mais uma vez corro o perigo de me preocupar muito pouco com o significado das palavras e logo que me fatigo leio de tal maneira que, embora outras pessoas ainda possam compreender o que estou lendo, eu próprio não sei mais o que leio.
Em geral, quatro componentes da apresentação da palavra: a ‘imagem sonora’, a ‘imagem visual da letra’, a ‘imagem motora da fala’ e a ‘imagem motora da escrita”. Além disso, depois de falarmos, recebemos uma ‘imagem sonora’ da palavra falada. Enquanto não tivermos desenvolvido muito nossa capacidade de fala, essa segunda imagem sonora não precisa ser a mesma que a primeira, mas apenas associada a ela. Nessa fase do desenvolvimento da fala – a da primeira infância -, usamos uma linguagem que nós mesmos construímos. Comportamo-nos como os afásicos motores, pois associamos diversos sons verbais exteriores a um único som produzido por nós mesmos. (motora da escrita). Se uma criança não possui o gosto pela leitura na infância, na adolescência ou na fase adulta as coisas se tornarão difíceis. Criar o hábito (ou gosto) pela leitura é um primeiro passo que depende basicamente de pais e professores.
O bom professor, que estimula o gosto de ler, promove a leitura acompanhada, dialogada, comentada, leitura a dois etc., para identificar com os alunos a existência de uma obra de arte literária. Quando ocorre a descoberta, não há dúvida, estamos diante do intrincado e maravilhoso mundo da literatura.
Aprendemos a falar a língua de outras pessoas esforçando-nos por tornar a imagem sonora produzida por nós tão igual quanto possível à que deu lugar à nossa inervação da fala. Aprendemos dessa forma a “repetir” – dizer à imitação de outra pessoa.
Aprendemos a soletrar ligando as imagens visuais das letras a novas imagens sonoras, as quais, por seu lado, devem nos lembrar os sons verbais que já conhecemos. Imediatamente “repetimos” a imagem sonora que denota a letra, de modo que também se observa que as letras são determinadas por duas imagens sonoras que coincidem, e duas apresentações motoras que se correspondem.
Aprendemos a ler ligando, de acordo com certas regras, a sucessão de apresentações motoras da palavra que recebemos quando enunciamos letras isoladas, de modo a fazer surgir novas apresentações motoras da palavra. Assim que dizemos em voz alta essas novas apresentações da palavra, descobrimos por suas imagens sonoras que as duas imagens motoras e imagens sonoras que recebemos dessa forma, de há muito nos são familiares e idênticas às imagens empregadas no falar. Associamos então o significado ligado aos sons verbais primários às imagens sonoras adquiridas pela soletração. Agora lemos com compreensão.
Esses são fenômenos de atenção dividida, que surgem precisamente aqui porque uma compreensão do que é lido só ocorre de forma muito indireta. Se o processo da própria leitura oferece dificuldades, não há mais dúvida quanto à compreensão. Isso fica claro pela analogia com o nosso comportamento quando estamos aprendendo a ler; devemos ter o cuidado de não considerar a ausência de compreensão como prova de interrupção de um trato. A leitura em voz alta não deve ser considerada como um processo de algum modo diferente da leitura silenciosa, a não ser pelo fato de que ela ajuda a atenção da parte sensorial do processo de leitura.
Aprendemos a escrever reproduzindo as imagens visuais das letras por meio de imagens da mão, até que essas mesmas imagens visuais ou outras semelhantes apareçam. Em geral, as imagens da escrita são apenas semelhantes às imagens da leitura e associadas a elas, visto que o que aprendemos a ler é impresso e o que aprendemos a escrever é manuscrito. Escrever vem a ser um processo comparativamente simples e que não está tão sujeito à perturbação quanto a leitura.
Quanto à leitura, a ‘imagem visual da palavra’ indubitavelmente faz sentir sua influência em leitores dotados de prática, de modo que as palavras individuais (particularmente os nomes próprios) podem ser lidas sem que sejam soletradas.
O que fazer para os estudantes leiam mais? A resposta não é tão simples. Os professores podem, discretamente, variar a oferta literária, entendendo que literatura não é língua somente. A leitura da obra literária, luxuosa ou não, é o ponto de partida ou regra de ouro do ensino de letras, que lidará com gêneros ou tipos conhecidos desde Aristóteles. Assim são criados os fundamentos literários para trabalhar o lirismo, a narrativa ( conto, romance, epopeia etc.) e outros tipos, como as memórias, o diário, a máxima, identificar o gênero é um primeiro e fundamental exercício, a que se deve somar o exame da estrutura da narrativa: enredo, personagem, tempo, ordem de relato, suspense, apresentação e desfecho.
Ocorreu-nos proclamar da volta da caligrafia às nossas escolas. Nos bons tempos, ela era praticamente obrigatória, com os educandos levados a preencher as linhas paralelas com letras, sílabas e palavras que, como consequência, nos traziam o conforto de uma adequada expressão escrita.
Aos poucos, o hábito foi sendo superado e, para muitos, o exercício da caligrafia era a comprovação da obsolescência dos nossos métodos. Nada mais triste do que essa falsa visão de modernidade, hoje agravada pela fúria do acesso aos computadores de qualquer maneira.
O domínio de qualquer assunto – ou habilidade – requer doses gigantescas de informação, doses maciças de prática e, no caso de habilidades cognitivas superiores, boa capacidade de relacionar informações e de generalizar.
A tabuada não é exceção – depois da ideia de quantidade, expressa pelos números, ela é a pedra fundamental do conhecimento matemático.
Por Nelson Valente é professor universitário, jornalista e escritor