05/07/2019 13:34
”Não estamos no fim da maratona da solução dos problemas econômicos com os quais nos defrontamos, mas na linha de largada”
Passada uma semana do anúncio da conclusão das bases do acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia, negociado ao longo das duas últimas décadas, são poucos até aqui os consensos sobre os impactos da prevista liberalização de mercados nos dois lados. Ainda faltam documentos oficiais detalhando os inúmeros pontos negociados e sobram avaliações genéricas, mais baseadas em teorias e crenças.
Não há dúvida sobre seu tamanho, abrangência e importância. Além de acesso a mercados, o acordo inclui compras governamentais, propriedade intelectual, medidas fitossanitárias e vários outros aspectos das relações entre parceiros no comércio internacional. Só nesta quinta-feira, o governo brasileiro divulgou um resumo de 24 páginas, que descreve os princípios envolvidos nas negociações, na linha de documento similar divulgado pela União Europeia uma semana antes.
Não é possível responder com um “sim” ou um “não” incondicional se a intenção de abrir os mercados de 90% dos bens e serviços dos dois lados do Atlântico, envolvendo um quarto da economia mundial e 800 milhões de consumidores, resultará numa prática vantajosa para as partes. Além da inexistência de detalhamento do que foi negociado, o fato de o acordo estar programado para se concretizar plenamente, zerando as tarifas, em 10 anos (podendo se estender por 15 anos em casos específicos, como o dos automóveis) dificulta essa avaliação.
Essa dificuldade deriva, preliminar e principalmente, da impossibilidade de antecipar as condições políticas vigentes no decorrer desse longo período de implantação. Considerando que a ratificação dos textos negociados demorará pelo menos entre dois e três anos para ser concluída, seus efeitos práticos só se completarão, se tudo der certo, por volta de 2034. Não é possível determinar, nesse amplo espaço de tempo, o arco de mudanças capazes de influenciar, para o bem ou para o mal, a aplicação prevista das normas de flexibilização comercial negociadas.
Embora cercado de aspectos técnicos, são as condições políticas que em última análise definem a natureza dos acordos comerciais. No caso das negociações UE/Mercosul, uma confluência de interesses nos dois blocos se apresentou para ensejar o acerto básico obtido entre as partes.
Do lado da UE, teriam prevalecido dois aspectos. O primeiro, estratégico, se insere nos esforços para confrontar as atitudes e ações protecionistas do presidente americano Donald Trump, da qual acordos em série assinados com Japão, Canadá e México são exemplos. O outro tem a ver com a pressa dos dirigentes das comissões comerciais da UE, uma vez que está prevista uma renovação das direções no segundo semestre.
Da parte do Mercosul, apesar das tentativas do governo brasileiro de mostrar protagonismo, parece terem operado mais em favor do acordo pressões da Argentina e do presidente Mauricio Macri, em campanha pela reeleição, no pleito de outubro. O lado brasileiro, obviamente chave para o acordo, esteve relutante em relação às normas de proteção ambiental previstas no texto básico. Tanto que o presidente francês, Emmanuel Macron, ameaçou no último minuto abandonar as tratativas se o Brasil insistisse em não endossar o Acordo de Paris sobre mudanças climáticas, ratificado pelo Congresso Nacional em 2016.
Este, aliás, é um aspecto que vai além das regras comerciais e ganha um significado especial. Vedações relativas ao desmatamento e à degradação do meio ambiente, assim como ao descumprimento das normas internacionais de respeito aos direitos humanos e trabalhistas, aspectos decisivos para os europeus dentro acordo, se de fato forem cumpridas, representam um freio ao que o governo Bolsonaro vem praticando e ameaça levar adiante.
Supondo que as condições políticas, ao longo do período de ratificação e implementação do acordo UE/Mercosul se mostrem neutras, a primeira providência ao avaliar vantagens e desvantagens é fugir dos aspectos específicos. É possível que setores se antecipem na correção de deficiências e falta de competitividade, mas com tantas variáveis envolvidas e na falta de detalhes, não faz sentido decretar de antemão perdedores e ganhadores, embora seja inevitável que, num acordo dessa envergadura, eles existam.
Não é também o caso, justamente pela dificuldade de determinar como o acordo se desenrolará, de acreditar piamente nas projeções do que ele proporcionará de crescimento para a economia, num período de 10 a 15 anos. Esses ganhos estão sendo projetados num intervalo de US$ 87,5 bilhões a US$ 125 bilhões, em 15 anos. A União Europeia, de seu lado, estima que, nos dois lados, deixarão de ser cobradas tarifas no montante de € 4 bilhões por ano (US$ 4,5 bilhões).
A verdade é que não basta abrir mercados. Há casos, como o do México, em que a abertura comercial advinda com a Alca —a área de livre comércio formada em meados dos anos 90 entre Estados Unidos, Canadá e México—, não se traduziu no crescimento econômico esperado. A obtenção de bons frutos depende de como são criadas ou reforçadas as condições econômicas para alcançar esse objetivo.
Depende de como se prepara o terreno —aqui se pensa em infraestrutura física e institucional, da qual o sistema tributário é item essencial. Também de como se mostram as condições climáticas —aí entram as políticas públicas, incluindo crédito à produção, programas de formação de mão de obra, apoio à inovação, etc. E da maneira como se promove a colheita —quando entram em ação, entre outras, as questões de logística, armazenamento e distribuição.
Mais uma vez, contudo, respostas binárias —“sim” ou “não”— tendem a se apoiar em clichês e cair no vazio. Tudo o que se pode dizer por enquanto é que processos de abertura comercial tendem a ser positivos. Bem conduzidas, as inserções nas cadeias globais abrem caminho para novos investimentos, com maior densidade tecnológica e inovação, que se traduzem em incrementos relevantes de competitividade e produtividade.
Ainda são muitos “se” à espera de definições e fatos concretos. Desde já não se deve alimentar a ilusão de que esse acordo seja uma panaceia para os graves entraves produtivos brasileiros. Não estamos no fim da maratona da solução dos problemas econômicos com os quais nos defrontamos, mas na linha de largada.
Por José Paulo Kupfer, 70 anos, é jornalista profissional há 51 anos. Idealizador do Caderno de Economia do Estadão. É graduado em Economia pela Faculdade de Economia da USP.