22/07/2019 15:36
”Está na hora de termos uma constituição que proclame e defenda irrestritamente liberdade, igualdade perante a lei e predomínio da maioria…”
Desde a promulgação da chamada “Constituição Cidadã”, em 1988, virou lugar comum dizer que o Brasil é uma democracia, conceito defendido por vários dos nossos mais ilustres compatriotas e cantado em verso e prosa pelo mundo afora.
Mas isto é um mito. Por que estamos a enganar-nos por tanto tempo? Talvez a euforia de ter visto os militares afastarem-se do Palácio do Planalto depois de 21 anos tenha ofuscado nossa capacidade de reflexão. Fenômeno semelhante aconteceu inúmeras vezes na história do Brasil (vejam Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil, de Leandro Narloch, Leya, 2011), porque alguém inventou uma história e outrem – ou outros – a espalhou com competência.
Quem primeiro afirmou que a “Constituição Cidadã” criou uma democracia foi Ulysses Guimarães e nós, sem o cuidado de analisar o texto que ele brandiu da tribuna da Câmara dos Deputados em 5 de outubro de 1988, acreditamos nele. A manifestação contrária, solteira e realista, do saudoso eminente jurista Miguel Reale nas páginas d’O Estado de São Paulo naquele dia foi ignorada solenemente.
O que nos levou a fatos como esses dois: há cerca de três meses, o ministro do STF Alexandre de Moraes impunemente censurou a revista Crusoé; as emendas à PEC da previdência oriunda do Executivo mostram-nos, mais uma vez, que os deputados federais, com seu eufemismo “fiz o possível”, se dedicam à sua viabilidade eleitoral em detrimento da missão de cuidar do bem comum. A miséria, pobreza ou mediocridade econômica que afeta 90% dos brasileiros não nos deixa mentir.
Há, contudo, outros indícios que reforçam esta conclusão.
Para tanto, temos de começar pelos ingredientes imprescindíveis de uma democracia, ingredientes estes defendidos pela grande maioria dos filósofos políticos, de ontem e de hoje. Fiquemos só com só três deles: liberdade, igualdade perante a lei e predominância da maioria. Sem eles, não há democracia.
Estes ingredientes, infelizmente, passaram ao largo da “Constituição Cidadã”. Embora sejam proclamados no seu preâmbulo e nos seus primeiros artigos, são hipocritamente contrariados no resto do seu texto.
Vejamos alguns gritantes exemplos:
- a) quanto à liberdade: o direito de opinião não existe, já que o governante pode comprar a imprensa com nosso dinheiro, somos obrigados a manifestar-nos em dia de eleição e não podemos candidatar-nos a cargo público eletivo se o cacique do partido político não nos permitir; o direito de associação não existe, pois somos proibidos de criar livremente partidos políticos, que nada mais são que associações com fins políticos; o direito de trabalhar não existe, pois recebemos um carimbo na testa de incompetentes para o serviço público quando completamos 75 anos de idade; o direito de propriedade não é respeitado, pois nossa propriedade está sujeita a uma “função social” que a Constituição não define, nossas leis não protegem eficazmente nossa propriedade e porque somos obrigados a custear campanhas eleitorais de candidatos com cujas ideias não concordamos; o direito à vida e à segurança é efêmero, pois as leis facilitam aos criminosos agir livremente, mas obrigam as pessoas de bem a viver e trabalhar atrás de grades;
- b) quanto à igualdade perante a lei: a “Constituição Cidadã” criou uma casta privilegiada, principalmente políticos, juízes e procuradores, que pode fazer o que quiser com nosso dinheiro e liberdade; ela exige mais idade aos homens que às mulheres para aposentadoria; e dá maior poder político aos habitantes de estados menos populosos (o eleitor de Rondônia vale por nove eleitores de São Paulo, por exemplo);
- c) quanto à predominância da maioria: 60% dos senadores e 39% dos deputados federais representam 36% da população do País; as decisões do Congresso Nacional nem sempre exigem voto explícito da maioria dos membros da Casa.
Como se vê, esses ingredientes implícitos da democracia – liberdade, igualdade perante e lei e predomínio da maioria – são constitucionalmente desrespeitados no Brasil.
Entretanto, há quem diga que o Brasil é uma democracia porque escolhemos nossos governantes por voto periódico e secreto.
Mas esquecem-se de que o voto é uma consequência da democracia, não sua causa – é a prática de um princípio – e de que o voto é inútil se não for eficaz. Por eficácia do voto, entende-se influência nas decisões dos representantes pelos representados, o que é impossível num sistema proporcional de eleição de deputados federais e de três senadores que representam todos os habitantes de um Estado mas que podem votar incoerentemente entre si.
Além disso, democracia é um conceito, como honestidade. Não há pessoas mais honestas ou menos honestas, como não há países mais democráticos ou menos democráticos, motivo por que é um engano falar em “qualidade da nossa democracia”.
Então, dizer que vivemos sob um sistema democrático é um mito.
Está na hora de termos uma constituição que proclame e defenda irrestritamente liberdade, igualdade perante a lei e predomínio da maioria, e que, com isto, nos coloque no caminho da prosperidade, sonho dos compatriotas republicanos lá no distante 1889.
Por Sérgio Moura é advogado, ex-executivo da IBM Brasil, consultor em formulação de políticas públicas, autor de vários livros e detentor da Medalha do Pacificador