Opinião – Pré-Sal caipira

22/10/2019 12:41

”Flexibilidade no armazenamento e a aplicabilidade são atrativos do biogás; potencial do biogás no país é enorme; produção precisa de incentivo”, diz Pires

Uma das discussões mais interessantes e mais importantes que vêm sendo tratadas no setor elétrico é o tema da geração distribuída. Todos aguardam novas regras a serem definidas pela Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica). A fonte que mais estaria se beneficiando é a energia solar, dada as suas características. Entretanto, temos uma outra fonte pouco conhecida, mas com 1 grande potencial, que é o biogás. Biogás é a definição dada a uma mistura gasosa proveniente da decomposição de matéria orgânica por micro-organismos fermentadores em locais sem oxigênio, por 1 processo chamado “digestão anaeróbica”.

Sua participação na matriz energética mundial ainda é tímida, com o energético respondendo por menos de 1%. Por outro lado, de 1990 a 2015, a produção de biogás foi uma das fontes de energia que mais cresceu, 1 aumento de 12,8% ao ano (a.a.). Em 2014, Alemanha, Reino Unido e Suíça foram os países que possuíam o maior número de plantas de biogás no mundo. Juntas,  somavam mais de 11.000 estações (esgotos, sobras orgânicas, agricultura, industrial e aterros sanitários). Os Estado Unidos possuem mais de 2.000 plantas em operação, com o incentivo do governo em créditos fiscais por subsídios à produção, sendo a maioria proveniente de aterros sanitários ou de águas de rejeitos. Nos países mencionados e em outros que fazem parte da Europa, o desenvolvimento da malha de biogás alavancou devido a incentivos diretos, como é o caso das tarifas feed-in, créditos de carbono e créditos fiscais.

No Brasil, até o final de 2018, havia 276 plantas de biogás em operação, 117% a mais do que no mesmo período em 2015 e produção de mais de 3 milhões de metros cúbicos por dia (m³/d). Referente à matéria-prima utilizada, a maior parte da produção está associada às unidades que operam com esgoto, lixo e resíduos da agropecuária. Isso se deve à alta quantidade de resíduos orgânicos gerados, tanto nas cidades quanto em fazendas, principalmente na prática de atividade pecuária de confinamento.

A biodigestão anaeróbica propicia a captura do metano que seria liberado para a atmosfera (se houvesse a degradação da matéria orgânica em ambiente livre). É o teor de metano (CH4) que irá determinar o conteúdo energético do biogás, sendo sua quantidade proporcional a quantidade de energia gerada. No Brasil, a média de CH4 no biogás é de 60%. Por outro lado, para ser considerado biometano, a quantidade de CH4 deve ser de 90%.

A flexibilidade no armazenamento e a aplicabilidade se tornam 1 diferencial atrativo na produção do combustível, em especial como energia elétrica ou veicular. O uso do biogás como energia térmica substitui a lenha, o Gás Liquefeito de Petróleo (GLP) e o óleo combustível e diesel. No uso como energia elétrica, o maior rendimento seria por meio do biometano, em razão do elevado teor de metano. Uma vez que é possível estocar biogás, consumidores que pagam tarifa horo-sazonal (grupo A) podem optar pela geração a biogás nos horários de pico, reduzindo a despesa com eletricidade. Já no uso veicular, não é possível utilizar diretamente o biogás, somente o biometano. A maior dificuldade encontrada é a limitação na autonomia e o abastecimento, acrescentada ainda pela perda na competição econômica com o gás natural veicular (GNV).

Insumos orgânicos são a fonte de matéria-prima utilizada na produção de biogás, e possuem uma gama de variedades disponíveis, principalmente se tratando de dejetos tanto urbanos quanto oriundos da zona rural, que podem ser: esgoto, lixo, efluentes de processos industriais, resíduos de safras agrícolas como bagaço de cana-de-açúcar e vegetais, palhas, esterco, desejos da atividade pecuária, entre outras opções. Cada matéria-prima possui características que são mais ou menos favoráveis, a depender da situação em que o produtor e/ou empresa enfrentará na região de produção do biogás. Os fatores que interferem dependem da oferta no decorrer do ano, logística de captação, legislação ambiental vigente, custos, tecnologia aplicada, contaminantes existentes, modelo de negócio e uso final. Outra questão, mais complexa, é a escolha do biodigestor associado ou não à atuação de microrganismos que incidirão na matéria-prima, como é o caso dos que são capazes de digerir celulose, acoplados para que o processo possa acontecer.

A escolha do biodigestor é parte fundamental (se não a mais importante) para 1 projeto, em associação com o tipo de substrato, regime de alimentação, se existirá 1 sistema de agitação ou não, da temperatura ambiente e interna e da concentração de sólidos na mistura. Em cada 1 deles, existem alternativas que se tornam menos ou mais viáveis, conforme pontos anteriormente mencionados. Na concentração de sólidos, há a biodigestão de rota seca ou úmida. A faixa de temperatura de operação pode ser mesofílica ou termofílica. O tipo de alimentação pode ser contínuo ou por batelada e assim por diante.

Todas estas características culminarão no tipo de biodigestor a ser empregado, sendo 3 os principais: biodigestor de lagoa coberta, biodigestor tipo UASB (Upflow Anaerobic Sludge Blanket) e biodigestor tipo CSTR (Continuous Stirred Tank Reactor). O primeiro, lagoa coberta, é o mais simples a ser construído e operado, chamado de “modelo canadense”, considerado o mais rudimentar e o de menor produtividade, com média diária de 0,2 e 0,3 m³ biogás / m³ reator. O tipo UASB apresenta processo mais tecnológico, capaz de suportar alta carga volumétrica e consegue gerar diariamente a média de 0,74 a 0,8 m³ biogás / m³ reator. Por fim, o biodigestor do tipo CSTR é, sem dúvida, o mais avançado, com controle de temperatura, sistema de agitação contínua e suporta cargas orgânicas volumétricas altíssimas e concentração de sólidos, com tempo de retenção hidráulica entre 15 a 20 dias e média de produção diária superando 1,2 m³ biogás / m³ reator.

No que diz respeito ao uso final da produção brasileira de biogás existente, 73% é destinada para a geração de eletricidade, 17% para a geração de calor e 10% sofrem processos regulatórios previsto na ANP, para que possam se tornar biometano. A razão explicativa para o uso de quase ¾ da produção para geração de energia elétrica se deve às altas tarifas, pela falta de infraestrutura no fornecimento de energia nas zonas rurais e pela crescente fiscalização ambiental em torno do descarte de lixos e resíduos, sobretudo os resíduos oriundos da pecuária, confinamento e criação intensiva. O potencial de biogás no Brasil é muito grande. Se fala de algo em torno de 70 milhões de m³/dia, mais do dobro que hoje se importa gás natural da Bolívia. Os desafios são muitos, mas é preciso se construir uma legislação e uma regulação que incentive a produção de biogás. Não temos dúvidas de que o Brasil possui um pré-sal caipira que, ao contrário do outro, é renovável e está localizado em todas as regiões do país, e não somente no litoral.

 

 

 

Por Adriano Pires é sócio-fundador e diretor do Centro Brasileiro de Infra Estrutura (CBIE). Doutor em Economia Industrial pela Universidade Paris XIII (1987), Mestre em Planejamento Energético pela COPPE/UFRJ (1983) e Economista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1980). Atua há mais de 30 anos na área de energia.

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