29/10/2019 14:18
Projeto apresentado pelo deputado Roberto de Lucena (Podemos-SP) propõe 34 alterações na Lei de Improbidade Administrativa onde os acordos não podem ser blindagem
Em tempos de aumento significativo do grau de consciência nacional em relação à relevância do combate à corrupção e à proteção do patrimônio público, em perspectiva panorâmica, não é difícil perceber, para aqueles que atuam no sistema de justiça na dimensão litigiosa, que a lei 8.429, de 24 de junho de 1992, conhecida como lei de improbidade administrativa, é, há vários anos, o principal instrumento jurídico utilizado no Brasil para que o Ministério Público possa cumprir sua missão constitucional neste plano.
Segundo dados do CNJ, aliás, nos últimos 10 anos, foram 18.700 determinadas condenações definitivas com base na lei. E, segundo pesquisa-diagnóstico publicada em 2017 pelo Instituto Não Aceito Corrupção, mais de R$ 3,2 bilhões recuperados.
Por ironia do destino, esta lei, que vigora há quase 30 anos, foi sancionada pelo ex-presidente Fernando Collor, que foi retirado do poder em virtude da prática de atos de corrupção. Ela foi construída para coibir e punir na esfera civil, sem prejuízo da responsabilização criminal, atos ímprobos de agentes públicos, bem como dos respectivos beneficiários, agrupando-os em 3 grandes categorias: atos em que haja enriquecimento ilícito (os mais graves), atos em que haja dano ao patrimônio público (gravidade média) e atos com violação a princípios administrativos (os menos graves).
As penas são escalonadas proporcionalmente à gravidade, incluindo como espécies de sanção a perda de cargo, suspensão de direitos políticos, multa, reparação dos danos e proibição de contratar com o poder público, estando legitimados à propositura destas ações o MP e, concorrentemente, a pessoa jurídica de direito público lesada. Mas, na prática, mais de 95% das ações são propostas pelo MP.
Comissão jurídica constituída por iniciativa da Presidência da Câmara dos Deputados, coordenada pelo ministro do STJ Mauro Campbell, após intensos debates, apresentou relatório que resultou em projeto de lei (10887/18) apresentado pelo deputado Roberto de Lucena (Podemos-SP), que propõe 34 alterações na lei.
Algumas das proposições: redução do tempo mínimo da pena de suspensão de direitos políticos, a punição de corruptores, a extinção da punição por atos culposos ou baseados em interpretação razoável da lei, além incluir a pena de ressarcimento para danos não patrimoniais e a inabilitação automática para o exercício de funções públicas por 5 anos, nas hipóteses de aplicação da pena de perda de cargo público. E a mais importante de todas: a possibilidade de acordo, hoje vedada pela lei.
Vale registrar que ao longo destes 27 anos, no exercício interpretativo da lei, a própria jurisprudência dos tribunais já se encarregou de calibrar em vários aspectos o alcance da norma. Exemplo: a questão da cumulatividade obrigatória ou não de todas as sanções (consolidando-se o entendimento de que não existe), o caráter taxativo ou exemplificativo dos fatos puníveis (assentou-se a visão de ser a enumeração exemplificativa), a necessidade ou não de prova sobre a dilapidação de bens para decretação de sua indisponibilidade (não se exige) e até a legitimidade do MP para propor as ações (totalmente reconhecida e consolidada).
Sem prejuízo destes ajustes interpretativos, é válido e importante repensar as leis à luz da nossa dinâmica social e em busca da eficiência e proporcionalidade do sistema de justiça. Segundo a radiografia do Instituto Não Aceito Corrupção, já referida, o tempo médio de duração destas ações é próximo dos 7 anos.
De um modo geral, penso ser positivo sancionar os corruptores, ressarcir danos imateriais e inabilitar automaticamente para o exercício de funções públicas quem tenha perdido cargo. Assim como retirar do foco punitivo atos revestidos de culpa leve ou decorrentes de interpretação razoável, relevante para que se busque ponto de equilíbrio e para que se evite a demonização do exercício da atividade política, de importância capital para a vida em sociedade.
Sou favorável, em tese, à ideia de acordos, tendência internacional também verificada no campo penal. Mas é um desafio. Penso ser necessário extremo cuidado na avaliação de cada um destes casos pelo MP, que deverá traçar política de atuação a nível nacional neste aspecto e observar o tema com lupa profunda.
Preocupar-se com a recuperação de valores e aplicação de multas pesadas sim, mas sem jamais permitir que sirvam os acordos como instrumentos legais de conveniente compra de impunidade pelos violadores da lei, para não propiciarmos legalmente a avaliação prévia que vale a pena correr o risco de delinquir, diante da perspectiva de celebração de confortante e blindante acordo.
Por Roberto Livianu, 51, é promotor de Justiça em São Paulo e doutor em direito pela USP. Atua na Procuradoria de Justiça de Direitos Difusos e Coletivos. Idealizou e preside o Instituto Não Aceito Corrupção. É comentarista da bancada do Jornal da Cultura, articulista da Folha de S. Paulo e do Estado de S.Paulo, e colunista da Rádio Justiça, do STF.