Opinião – Lei do Gás não levará gás do pré-sal para o interior

18/09/2020 15:15

”Sem contratos de longo prazo que assegurem retorno, investidores não conseguirão financiar a construção de novas redes de gasodutos. Modelo do setor elétrico é melhor”

Com a discussão da nova lei (PL 6407/13) e do novo mercado de gás, também veio à tona a discussão sobre a construção de novos gasodutos de transporte.

A expansão da malha de transporte de gás permitiria a interiorização da oferta de gás natural para Estados e regiões que ainda não são abastecidas por gás natural. Nessa categoria, existem grandes potenciais de expansão econômica e de aproveitamento desse combustível. O Estado de Goiás e o Triângulo Mineiro, por exemplo, têm forte presença do agronegócio. São regiões não atendidas por gasoduto. Não há dúvida de que a oferta de gás natural nesses locais traria grandes benefícios e econômicos e sociais.

Criando novas demandas para o gás natural, também se potencializa o estimulo à produção e à oferta de mais volume desse insumo, seja offshore no pré-sal, ou onshore, no continente. Esse círculo virtuoso permite pensar em projetos mais ousados como o Rota 4 e conexões entre regiões produtoras e novos centros de consumo.

Mas qual é o problema que impede o crescimento da malha de transporte? Por que há mais de 10 anos que não se constrói nenhum novo gasoduto de transporte?

O principal problema é o financiamento dessa infraestrutura.

Virou moda e palavra comum para alguns setores, dizer que os investimentos têm que ser privados, com risco total de mercado e que o Estado não deve interferir, que não deve haver nenhum tipo de incentivo para construção de gasodutos.

Essa é uma visão bastante liberal, até desejável, mas que não encontra paralelo quando se fala de infraestruturas no Brasil nem no resto do mundo. Esse discurso ou demonstra desconhecimento das estruturas econômicas para projetos de infraestrutura ou não pretende discutir o assunto pragmaticamente. Não há dúvida de que os investimentos serão privados, como têm sido os de linhas de transmissão, de terminais de GNL (gás natural liquefeito) e de usinas termelétricas. Entretanto esses empreendimentos, com investimentos privados, são lastreados por contratos de longo prazo, com recebíveis de qualidade, que permitem aos seus empreendedores usá-los como garantia de financiamentos, também de longo prazo.

Os recentes terminais de GNL e usinas térmicas foram viabilizados por contratos de venda de energia (“PPAs”) de 25 anos no Ambiente de Contratação Regulado (ACR). Nesse caso, o empreendedor corre o risco do desenvolvimento, da implantação e da operação, mas não corre o risco da demanda mínima de viabilização. A receita desses contratos tem alta previsibilidade. O custo é diluído na conta de todos os usuários, a contraparte disso é que a tarifa é regulada, ou seja existe um equilíbrio entre lucro e risco, dentro de um ambiente regulado.

Da mesma forma, em um ambiente com as mesmas macropremissas, com regulação e monopólio natural, as linhas de transmissão têm atraído muitos investidores para os leilões de transmissão. Isso ocorre principalmente pela previsibilidade dos fluxos de caixa, a receita ou RAP (Receita Anual Permitida) é garantida pela disponibilidade da linha e não pelo seu uso. Essa receita é rateada na tarifa de todos os usuários de energia. Mas trata-se de uma tarifa regulada. Dessa forma, fica estabelecido o equilíbrio entre lucro e risco. Os investidores aceitam uma taxa de retorno menor em troca de um baixo risco de receita.

Note-se que não se vê nenhum movimento para que os investimentos em linhas de transmissão de energia elétrica hoje sejam feitos com o empreendedor tomando 100% do risco para obter a receita –como se pretende com os de gasodutos de transporte.

Em outros tipos de infraestrutura não é diferente. Recentemente foram anunciados vultuosos investimentos em ferrovias e o novo marco regulatório do saneamento. Os novos investimentos em ferrovias estão ancorados na renovação de contratos existentes, ou seja, já existe uma receita previsível que permite ao atual concessionário financiar novos investimentos.

Os novos investimentos em saneamento também serão diluídos na base tarifária existente, enquanto se investe para expandir a oferta e aumentar o número de consumidores, trazendo benefício para o conjunto de consumidores. É um círculo virtuoso.

E não é só no Brasil que os grandes projetos de infraestrutura são garantidos por contratos de longo prazo com recebíveis de qualidade, por mecanismos de “take or pay”, de RAP ou diluição da tarifa. Isso acontece em todo o mundo. Quem tiver interesse pode estudar como os projetos de gasodutos de transporte na Europa foram viabilizados e verá a forte participação dos Estados na garantia de receitas e na criação do ambiente regulatório adequado. Esse tipo de política não impediu, ao contrário, ajudou a abertura do mercado e a forte participação de investimentos privados –mas dentro de modelos e regras que permitem financiabilidade.

Mas o discurso atual no Brasil parece que desconsidera essa lógica. Pretende-se aqui reinventar o modelo apenas para os gasodutos de transporte. Espera-se que a iniciativa privada invista bilhões de reais em gasodutos sem garantia de receita, sem qualquer mecanismo que garanta o financiamento e que os investimentos simplesmente sejam viabilizados pelo “mercado”.

Esse é um modelo no qual o risco é todo do empreendedor, mas a tarifa é regulada, ou seja, o risco é total e o lucro é limitado. Trata-se de sistema que comprovadamente não funciona. Mas parece ser um discurso fácil para postergar a questão.

O ambiente que se espera do novo mercado de gás trará ainda mais dificuldades para o financiamento de infraestrutura de maior porte. O novo mercado indica aumento do número de consumidores livres e maior liquidez, mais agentes comprando e carregando gás natural, porém com contratos menores e de curto prazo. Esse ambiente pode ser ideal para que exista concorrência no preço da molécula de gás, mas é ineficiente para gerar recebíveis que permitam financiar infraestruturas de grande porte.

Muito analisada, a mudança na Lei do Gás do regime de concessão para o de autorização para os gasodutos de transporte não vai destravar investimentos. Até porque não é isso que impede os investimentos.

Resumindo: para viabilizar grandes projetos os empreendedores precisam de contratos de longo prazo com previsibilidade de receita. Só assim conseguirão financiar tais obras.

Por outro lado, o mercado caminha para demanda pulverizada, contratos menores e de curto prazo, o que nos leva a crer que se assim for, o Brasil ficará mais 10 ou 20 anos esperando pela expansão da malha de transporte.

O novo mercado de gás poderá ser muito bom para a malha existente e conectada –a que está no Sudeste e na região litorânea do Nordeste. Mas será inócuo para cerca de 90% do território nacional. Não trará benefícios significativos para importantes cadeias produtivas como as do agronegócio e mineração que estão essencialmente em áreas onde não chegam os gasodutos.

Há um entendimento comum, amplamente alardeado, de que o gás natural pode ser o grande propulsor da retomada da economia. Será o vetor de um novo desenvolvimento industrial para o país. Nesse caso, é justo que alguns Estados e regiões se beneficiem disso e outros fiquem excluídas?

Existe solução? Sim, diversas.

Basta olhar para o modelo da energia elétrica. Nesse setor, o mercado é cada vez mais livre e líquido e a infraestrutura está em contínua expansão. O exemplo são as linhas de transmissão, já demonstrado acima e como em recente anúncio da Aneel.

Outra opção: instalar o que se chama de “térmicas locacionais”. São usinas em locais determinados que possam produzir benefícios para o sistema elétrico e sirvam de fator indutor para novos gasodutos de escoamento e transporte. Isso será possível por meio de receitas de transporte de gás com previsibilidade –fundamento essencial para o financiamento desse tipo de infraestrutura.

É notório que várias mudanças regulatórias foram feitas para viabilizar os investimentos em térmicas e terminais de GNL. Isso criou condições especificas nos leilões de energia, e assim permitiu que os contratos de longo prazo viabilizassem o financiamento desses terminais e térmicas.

É fato que nenhum terminal privado foi construído sem que estivesse lastreado nos PPAs do ACR e é fato que foi criado o ambiente adequado para isso. O mesmo pode ser aplicado para expansão da malha de gasodutos.

Ao final, deveríamos discutir se vamos ou não ter interiorização do uso do gás natural com a consequente construção de novos gasodutos de transportes. Se for essa a opção, é necessário um modelo que garanta financiabilidade.

 

 

 

 

Por Paulo Alexandre Carvalho Guardado, 46 anos, é diretor da Companhia Maranhense de Gás (Gasmar), com mais de 15 anos de experiência no setor de gás e energia. Pós-graduado em Petróleo e Gás pelo IMT (Instituto Mauá de Tecnologia), com certificação em GNL pela Lloyd’s Maritime Academy.

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