01/10/2020 00:00
”uma é invisível; o outro, não. Preços de alimentos são, por natureza, mais voláteis. Corretivos também são diferentes. Há mais riscos, sim, mas para 2021”, explica autor
Se a voz do povo é a voz de Deus, Deus está dizendo que estamos, neste atribulado Brasil às voltas com a pandemia de covid-19, vivendo um rebote inflacionário. Não adianta perder tempo explicando que a alta atual nos preços de alguns alimentos é um choque de oferta, não um surto inflacionário.
Nem adianta também lembrar que os remédios para uma coisa são diferentes dos aplicáveis para a outra. E que seria um desastre adotar as políticas corretivas de uma na outra –e vice-versa.
Tentar diferenciar preço alto –fenômeno típico de choques de oferta ou de demanda –de alta, generalizada e contínua, de preços –o que define a existência de um processo inflacionário– é missão inútil. Quem vai ao supermercado tem certeza de que se trata de inflação o que lê nas etiquetas das gôndolas. Se índices ao consumidor, como o IPCA, o mais importante, porque baliza o sistema de metas de inflação, estão no chão, azar dos índices.
Para muitos, o que mantém índices de preços ao consumidor baixinhos é, simplesmente, fraude ou manipulação de quem calcula, no caso o IBGE, instituição de credibilidade irretocada. Ou culpa de uma construção marota, com cara de coisa técnica, mas que, na verdade, é feita para encobrir a dura realidade da perda de poder aquisitivo da população.
Não importa muito, nesse caso, se, enquanto alimentos, que respondem hoje por 18% da cesta do IPCA, estão com preços em alta, outros preços, com peso também relevante no índice, encontram-se em baixa –e alguns, como muitos serviços, em contração. E que, por causa desse jogo de compensações, a inflação ao consumidor roda, já há anos, abaixo do piso do intervalo do sistema de metas de inflação.
A confusão, convenhamos, faz algum sentido. Não deixa de ser curioso que uma ocorrência presente no dia a dia de todos, com impactos relevantes nas decisões e na vida de cada um, a rigor, não passe de uma convenção social. Na verdade, aquilo que atende pelo nome inflação é uma perfeita abstração. Ninguém consegue pegar a inflação na mão. É necessário que existam 2 pontos, separados por algum intervalo de tempo, para que o fenômeno possa ser representado.
Por isso, não é possível “ver” inflação no supermercado ou na feira livre. No supermercado, o que se pode enxergar é preço alto ou preço baixo, embora preço baixo, por um algum mecanismo de memória que influencia o comportamento humano, raramente seja visto.
Sabe as carnes, principalmente a bovina, que provocaram comoção muito semelhante à de agora, nos últimos meses de 2019? Foi um choque de oferta, muito em razão de uma pressão de compras da China, mas que deixou nervos à flor da pele com “a volta da inflação”.
Agora carnes estão com preços em deflação, alguém dá notícia? No acumulado do ano, um recuo de 2%, no item em geral, com mergulhos acima de 10%, caso da alcatra, mais do que 8%, no contra-filé e, essa é para aproveitar, quase 20%, no filé mignon.
Preços de alimentos são, por natureza, mais voláteis. Do lado da demanda, são, em geral, elásticos a preço e renda, significando que, em tese, é possível deixar de consumi-los ou substitui-los com alguma facilidade. Do lado da oferta, sofrem os efeitos do clima, das condições da safra, da área plantada, da logística de transporte.
Exemplos atuais? É para já. Preços de hortaliças e verduras, que, de janeiro a agosto subiram mais de 10%, no mês passado recuaram quase 5%. Preços de tubérculos, raízes e legumes, com alta pesada de 20%, no acumulado dos 8 primeiros meses, também caíram 5% em agosto. E, enquanto o limão azedava a caipirinha, com altas de preço de 40% no mês, acumulando 36% no ano, com todo mundo reclamando da disparada de seus preços, suas hoje primas pobres, as laranjas, baixaram 15% de preço, sem ninguém comemorar o preço agora mais em conta da laranjada.
A confusão entre preço alto e alta de preço pode não ser levada em consideração por muitos, mas é de grande importância para a política econômica. Não se deveria esquecer que inflação é o termômetro dos desequilíbrios nos mercados de bens e serviços, não a febre que debilita a economia. Assim, dependendo da natureza do fenômeno, se inflação ou preço alto, as políticas corretivas serão bastante diferentes.
Se o que ocorre é inflação, ou seja, se é uma alta generalizada de preços que está em marcha, a solução padrão de mercado é subir juros e cortar demanda. Valeria um enredo de filme de terror imaginar o desastre de uma política dessas, neste momento. Contração de demanda quando existe uma ampla e generalizada ociosidade? (melhor nem lembrar que o ministro Paulo Guedes não pensa em outra coisa).
Se, de outro lado, é preço alto, provocado por choque de oferta, o caminho do reequilíbrio teria de ser diferente, com medidas que ampliem justamente a oferta do(s) produto(s) escasso(s). Trata-se, nesse caso, de um jogo de incentivos ao aumento da produção –da área plantada e/ou da produtividade–, atendimento do mercado interno, manobrando tributos na importação e/ou exportação, e recomposição de estoques reguladores. Atuação mais pontual, exatamente como o tipo de pressão em curso.
Há razões para concluir que a alta do preços de alimentos, no momento, configura um novo choque de oferta. Mas, antes de tudo, não se poder esquecer que se trata de um acontecimento em escala global, como apontam os levantamentos mais recentes da FAO, o organismo das Nações Unidas para agricultura e alimentação.
A sustentação de mais pobres e vulneráveis durante a pandemia impulsionou a demanda de alimentos mundo afora. Só que países mais preocupados com a segurança alimentar de sua população tiveram o cuidado de evitar a dispersão de mercados compradores, limitando ou proibindo exportações de produtos básicos, sobretudo grãos.
Os mais experientes especialistas em acompanhamento de preços projetam a continuidade de altas em alimentos até o fim do ano, mas com gradual arrefecimento da pressão altista. Consideram algum efeito substituição, embora no caso do arroz, alimento básico da mesa brasileira, essa troca seja mais difícil. Também levam em conta alguma ampliação das importações, e um mix melhor entre vendas para o mercado interno e externo.
Previsões indicam que, nos supermercados, os preços de alimentos ainda subirão forte em setembro, podendo variar 1,65% sobre agosto. Mas já em outubro o índice deve recuar pela metade, chegando ao fim do ano com altas mensais de 0,5%, mais perto da normalidade.
Em compensação, os serviços e os preços administrados continuarão quase parados. Preços dos serviços podem aumentar 0,5% no ano e os administrados –combustíveis e energia, entre os de maior peso no orçamento do consumidor–, terminariam 2020 estáveis em relação a 2019.
No conjunto, no ano, a inflação não passaria muito de 2%, mais uma vez abaixo ou apenas tocando no piso do intervalo do sistema de metas, cujo centro para 2020 foi fixado em 4%, com margem de 1,5% para baixo ou para cima.
Preocupações com inflação, porém, não devem ser jogadas no fundo da gaveta. Não é de hoje que IPAs (índices de preços no atacado) descolaram dos IPCs (índices de preços ao consumidor), mas hoje essa diferença é recorde. Estimativas são de que, por exemplo, o IPA industrial suba 16% neste ano, em contraste com alta de apenas 0,66% no IPCA de bens industrializados.
Esse é um sinal de alerta para possíveis pressões inflacionárias em 2021. A ainda grande ociosidade presente na economia, com destaque para o desemprego maciço de mão de obra, não permite que, no consumo, sejam sancionados os aumentos de custos na produção, mas isso não quer dizer que os custos aumentaram. Aumentaram, em certos casos muito, e, com isso, as margens dos produtores se estreitam, promovendo um represamento de repasses.
Conforme o ritmo de retomada da economia –economistas de mercado esperam expansão de 3,5%, em 2021, depois de contração em torno de 5% a 5,5%, em 2020– podem se abrir espaços para encaixar aumentos mais do que proporcionais nos preços, absorvendo custos antes represados. Tanto que as projeções para a inflação, no ano que vem, encontram-se agora nas vizinhanças de 3% a 3,5%, quase o dobro do ritmo de 2020, e bem mais perto do centro da meta, de 3,75%, fixada para 2021.
Por José Paulo Kupfer, 70 anos, é jornalista profissional há 51 anos. Escreve colunas de análise da economia desde 1999 e já foi colunista da Gazeta Mercantil, Estado de S. Paulo e O Globo. Idealizador do Caderno de Economia do Estadão, lançado em 1989, foi eleito em 2015 “Jornalista Econômico do Ano”, em premiação do Conselho Regional de Economia/SP e Ordem dos Economistas do Brasil. Também é um dos dez “Mais Admirados Jornalistas de Economia”, nas votações promovidas pelo site J&Cia. É graduado em Economia pela Faculdade de Economia da USP.