Opinião – Pequeno negócio, potencial inovador, novo normal

04/11/2020 13:46

Micro e pequenas empresas tiveram acesso a crédito para atravessar crise

Antes da chegada do coronavírus, a revolução digital já vinha provocando mudanças radicais na economia e na sociedade. A forma como se investe, se trabalha, se produz, se vende, tudo mudou profundamente. Podemos citar alguns aspectos. Do lado do capital, as maiores corporações do mundo hoje (produtoras de computadores e telefonia, plataformas digitais de comércio, de comunicações, de serviços de mobilidade urbana e entregas, dentre outras) não têm mais sua riqueza expressa basicamente em ativos físicos (como fábricas, plataformas de petróleo, ferrovias…). Do lado do trabalho, ele deixou de ser sinônimo de emprego (com carteira assinada) e cada vez mais se confundem empregador e empregado em uma só figura do dono do seu próprio e, muitas vezes, pequeno negócio.

Como sabido, a pandemia acirrou esse processo de transformações estruturais, em especial em direção à acelerada digitalização das economias. Impôs novos valores e hábitos. Depois de vencido o vírus, certamente não se voltará à vida anterior à sua chegada, mas se terá um “novo normal”. Será preciso revisitar teorias e análises, e uma das principais delas envolve questões de produtividade.

A revolução digital tornou obsoletos conceitos e medidas tradicionalmente usados para interpretar a produtividade e mesmo a competitividade. Mensuravam e interpretavam (corretamente) uma economia de bens, mas que cada vez mais se torna uma de serviços e direitos intangíveis. Precisamos de novos referenciais e analistas mundo afora estão a buscar construir novos consensos1, mas esses novos ventos parecem que ainda não chegaram ao Brasil, com analistas com dificuldade para arejar reflexões e medidas.

Não compreendem porque indicadores de produtividade melhoraram em meio a pandemia, como se os índices tivessem sido contaminados2. Talvez achem que seja algo exótico ou atípico que dispararam as inscrições em microempreendedores individuais (MEIs) e mesmo a abertura de novas micro e pequenas empresas3. Diante da emergência da pandemia, mas, sobretudo, já percebendo que não mais adiantará ambicionar ter emprego com carteira assinada em uma empresa ou virar servidor público, cada vez mais brasileiros optam pelo empreendedorismo, por opção ou por desespero4. Parecem mais ágeis e espertos aos perceberem os novos ventos do que os analistas, as autoridades públicas e os parlamentares.

O Brasil aparece como campeão mundial de empreendedorismo em rankings recentes5. No lugar de se compreender melhor esse processo, muitos o atacam alegando que o pequeno não se torna nunca grande negócio. Que era de se esperar que um motorista de um aplicativo de mobilidade urbana fosse contratado com carteira assinada por tal serviço, ou melhor, que ele criasse o seu próprio aplicativo? Não se pergunta porque a maior empresa mundial de serviço de mobilidade urbana não tem uma única frota de carro próprio e não tem motoristas em sua folha de pagamento. Uma plataforma de comércio digital não tem de vendedores a entregadores em sua folha salarial, assim como multinacionais de esportes não têm costureiros e sapateiros como empregados. Temos muito a aprender sobre as verdadeiras formas de se medir a produtividade nesta nova economia.

Pior do que perder tempo com análises que a realidade tornou ultrapassada é perder a oportunidade de compreender e ajudar a fomentar saídas para atual recessão que devem passar por esse mundo do pequeno negócio6. Medidas pontuais, como auxílio emergencial, servem como anestesia, mas não curam a doença. Todos sabem que demanda sem capacidade de produzir acaba se traduzindo em importações ou inflação.

Não há dúvida de que não será fácil recuperar o caminho do crescimento. Seja porque a capacidade inovativa da indústria vem sendo decepcionante, seja porque o Brasil de hoje merece pouquíssima atenção nas decisões das empresas internacionais sobre a localização de sua produção. Já os motores do crescimento pré-2015 apresentam, hoje, perspectivas dinâmicas muito questionáveis.

A solução certamente não está nos jargões e nem nas políticas macroeconômicas, embora estas últimas devam ser coerentes. Olhar para as potencialidades do ambiente econômico pode ser muito mais útil. Alguns aspectos da realidade vivida pelas MPE no Brasil podem desnudar a importância que elas podem ter no futuro de nossa economia.

Pintec de 2017 (Pesquisa de Inovação do IBGE) mostra que a atividade inovativa não é exclusividade de grande empresa, muito ao contrário. As micro e pequenas (de 10 a 99 empregados) representam 86,6% do total de empresas inovadoras. A taxa de inovação, onde as empresas de 10 a 99 empregados chegaram a 32%, mostra que mais de um terço das empresas desta faixa explicita a realização de atividades inovadoras. Não há como negar que as MPE são agentes ativos dentro do processo de inovação das empresas no Brasil.

O que salta realmente aos olhos, no entanto, é o quanto as MPE são importantes na difusão das inovações. O gasto das MPE com aquisição de máquinas e equipamentos chegou a 1,26% da receita líquida de vendas, nível bem superior ao das empresas médias e quase o triplo ao registrado pelas grandes empresas. Desta forma, as MPE tiveram participação preponderante na aquisição de máquinas e equipamentos. (É curioso que estes resultados se aproximam de investigação sobre eficácia de incentivos fiscais de P&D, apontando impactos mais fortes nas empresas menores)7.

A produtividade da economia é impulsionada pela inovação quando esta é difundida, e isto se faz, em grande medida, por meio da penetração de máquinas e equipamentos de nova geração no aparelho produtivo. Crucial notar que estes números foram conseguidos mesmo num ambiente hostil frente ao crédito e num período no qual as taxas básicas de juros eram maiores que as atuais. Uma política de crédito mais favorável certamente levaria a números muito melhores.

Enfim, o futuro nos reserva competição sangrenta pelos mercados mundiais e pelo nosso mercado interno. As MPE podem fazer a diferença para que os produtos de cadeias produtivas nacionais sejam competitivos, especialmente colaborando com a grande e média empresa em flexibilidade, baixos custos e alta produtividade.

NOTAS DE RODAPÉ

  1. O recente artigo de Diane Coyle, “The Key to the Productivity Puzzle”, é ilustrativo dessa busca aqui citada por novos referenciais – ver:  https://tinyurl.com/y2z2xlch
  2.  Recente estudo publicado pelo IBRE/FGV, intitulado “O avanço da pandemia da Covid-19 amplia a incerteza sobre os dados de produtividade no Brasil” apresenta evidências de que os indicadores tradicionais de produtividade do trabalho foram profundamente afetados durante a pandemia, elevando, em muito, a diferença dos resultados a depender da métrica utilizada. Destaque para a produtividade do trabalho sob a ótica da hora efetivamente trabalhada, na indústria e no serviço, a qual houve impressionante crescimento superior a 20%, ano a ano, no segundo trimestre de 2020. Ver: https://bit.ly/31lmYZ5
  3. A evolução detalhada das inscrições e aberturas de novas micro e pequenas empresas durante a pandemia pode ser obtida no Portal do Empreendedor, e tem sido objeto de diversos artigos na imprensa. Ver: https://bit.ly/37kN6H7
  4. De acordo com o IBGE, a taxa de desemprego, que já era alta antes do início da pandemia, subiu de 10,5% (9,8 milhões de pessoas), da primeira semana de maio, para 14,4% (14 milhões de pessoas), na quarta semana de setembro. Ver: https://bit.ly/3o8Uhs7
  5. O relatório global 2019/2020 realizado pelo Global Entrepreneurship Monitor (GEM) pode ser acessado no seguinte endereço: https://bit.ly/34c91yj
  6. A centralidade das micro e pequenas empresas para a recuperação, ou mesmo reconstrução das economias destruídas pelo avanço da pandemia, ganha cada vez mais destaque nos planos governamentais e no debate público internacional. Para exemplo, ver este alerta sobre a importância da MPE na recuperação da economia norte-americana —https://bit.ly/35hFHG9
  7. Artigo recente de Appelt, Bajgar, Cirscuolo e Galindo-Ruenda, “Effectiaveness of R&D tax incentives in OECD economies” – ver https://tinyurl.com/y6s7vkhr

 

 

 

 

Geraldo Biasoto Junior, 58 anos, é professor e doutor em economia pela Unicamp.

 

José Roberto Afonso, 59, é economista e contabilista. É também professor do mestrado do IDP e pós-doutorando da Universidade de Lisboa. Doutor em economia pela Unicamp e mestre pela UFRJ.

 

 

Murilo Ferreira Viana, 29 anos, é consultor econômico e mestre em economia pela Unicamp.

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