Opinião – A economia da experiência

04/01/2021 13:33

Vacinação pode ser oportunidade
De não repetir erros da pandemia

Túnel de descontaminação em Jaboatão dos Guararapes (PE)

Desde quando apresentei, há alguns anos, um trabalho sobre experiência do consumidor em um congresso acadêmico na FGV, fiquei encantado com o tema. Logo adaptei as ideias do artigo para um modelo focado no cidadão, que também apresentei em congresso, nos EUA.

Explico rapidamente uma parte da teoria. Nós, como cidadãos, exercemos uma série de papéis no nosso relacionamento com o poder público e as cidades. Somos pedestres, ciclistas, motoristas, mães de alunos, pacientes, usuários de parques, de bibliotecas e assim por diante.

Cada um desses papéis envolve, para usar o jargão, algumas jornadas, que vão desde atravessar uma via movimentada (pedestre) a marcar um exame de saúde (paciente).

Em cada jornada, costuma haver um ou mais pontos de dor, que são etapas ou componentes do processo que causam frustração e que podem ser redesenhados para que tudo ocorra de forma tão simples como usar um smartphone.

Por exemplo, aqui em São Paulo pontos de dor do pedestre são semáforos apressadinhos e faixas de travessia colocadas no local errado, que aumentam o risco de atropelamento.

A gente pode ampliar ainda mais o conceito e olhar para a experiências das pessoas em geral. A vida é uma coleção delas, muitas vezes repetitivas e sem sal. E que nem sempre são neutras ou positivas –é só pensar no que passa, com frequência, um homem ou adolescente negro nos shopping centers brasileiros.

Um aspecto interessante do fenômeno é que as pessoas geralmente não se dão conta de que estão exercendo algum papel social em contextos específicos, quando navegam pelos diversos caminhos da vida. Uma fonte comum de frustração de quem emigra, por exemplo, é a confusão que se faz entre a experiência de turista e a de viver de fato em outro país.

A propósito, viagens e atividades de lazer são alternativas para quebrar a monotonia de sempre, criando memórias duradouras e moldando narrativas pessoais. Mas não só elas: experiências estruturadas também fazem parte desse cardápio, o que traz a discussão para outro nível. Na sequência.

EVENTOS E VACINAÇÃO

Economistas cunharam o termo bens de experiência para se referir a serviços como uma sessão de fotografia, viagens e cortes de cabelo e a produtos como garrafas de vinho. São bens em que a qualidade só pode ser inferida ou julgada depois do consumo, que é fortemente influenciado pelas expectativas.

Mas raramente se fala em economia da experiência, talvez porque seja um termo surgido na literatura de negócios, ainda que com uma abordagem mais restrita do que a desta coluna.

Em vez disso, aqui celebramos a ideia da chamada economia criativa, que virou até nome de secretaria estadual. Pega bem, né?

A proposição, que inspirou relatórios e mensurações de impacto no PIB, separa a criatividade do conceito tradicional de capital humano. Ela seria uma matéria-prima única de atividades como teatro, produção de games, arquitetura e biotecnologia.

Esse recorte tem seus méritos, mas peca por tornar invisível o conjunto muito maior de atividades que compõem a economia da experiência. Que abrange não apenas uma parte considerável do setor criativo, como a gastronomia e as artes, mas também todo o universo de acontecimentos que tornam a vida nas grandes cidades atrativa. De shows a eventos corporativos, de feiras e exposições ao futebol nos estádios.

Eventos são o motor central dessa economia e têm um efeito multiplicador tanto nas redes formais quanto nas informais. Uma feira, por exemplo, movimenta hotéis, aplicativos de transporte, restaurantes e muitos outros serviços. Por sua vez, jogos de futebol, espetáculos de teatro e outras atividades experienciais dão complemento de renda para muitos brasileiros “invisíveis”, do pipoqueiro ao camelô.

Esse setor foi duramente castigado na pandemia e ainda sofre com a condução amadora, tipicamente brasileira, da crise.

Ironicamente, enquanto milhões de testes de covid-19 correm sério risco de apodrecimento em armazéns públicos, poderíamos ter usado toda a expertise do pessoal de eventos para organizar testagens em massa nas cidades brasileiras. É gente acostumada a gerenciar grandes fluxos humanos em shows e acontecimentos esportivos, pra começo de conversa.

Já que perdemos essa chance e considerando os desafios logísticos envolvidos na vindoura vacinação, por que não evitar a repetição do erro e, de quebra, criar experiências memoráveis para superarmos a cicatriz que o ano de 2020 nos trouxe?

Podemos evitar um cenário de caos e insatisfação popular que muitas vezes ocorre quando a nossa engessada gestão burocrática põe as mãos em tarefas complicadas.

De quebra, talvez comecemos a entender melhor que, mais do que serviços, o que o Estado oferece aos cidadãos são experiências, com todas as suas nuances.

 

 

 

 

Por Hamilton Carvalho, 48 anos, estuda problemas sociais complexos. É auditor tributário no estado de São Paulo, doutor e mestre em Administração pela FEA-USP, ex-diretor da Associação Internacional de Marketing Social, membro da System Dynamics Society e da Behavioral Science & Policy Association. É filiado à Rede Sustentabilidade.

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