04/01/2021 13:23
No fim dos anos 1930 dois políticos trabalhavam dioturnamente para pavimentar o caminho até a Presidência da República. O paulista Armando de Sales Oliveira fora interventor em São Paulo, nomeado pelo presidente Getúlio Vargas. Engenheiro formado pela tradicional escola Politécnica era um homem refinado, filho de senador e membro nato da oligarquia paulista certificado pelas cotas de sócio do jornal O Estado de S. Paulo, fundado e comandado pela família Mesquita. Sales apoiara a Revolução de 1930 contra o então presidente Washington Luís e seu candidato paulista Júlio Prestes, na esperança de que a força da nova economia e da nova elite industrial paulista se impusesse mais cedo ou mais tarde.
A 2.800 quilômetros de São Paulo, outro político refinado também apoiou a Revolução como governador da Paraíba eleito pela Aliança Liberal, o partido de Getúlio. Era José Américo de Almeida, que mais tarde seria ministro da Viação e embaixador. Diferentemente de Armando, homem da matemática e da engenharia, Zé Américo era poeta e escritor, autor do clássico A Bagaceira. Cada um ao seu estilo, Armando era pragmático, desenvolvimentista, pioneiro da geração de energia elétrica, autoritário e acreditava em progresso e dinheiro. Metia o dedo na tomada com gosto.
Zé Américo era o oposto: matreiro, sutil, capaz de conversar horas a fio sem sair lugar. Aquele tipo que conseguia tirar as meias sem tirar os sapatos. Mas não menos autoritário: comandou a repressão aos revoltosos de Princesa como secretário de Segurança do governador João Pessoa. Era uma espécie de coronel de fino trato, envernizado, perfumado e elegante. Em 1934 tentou seduzir o então tenente Ernesto Geisel, secretário de Fazenda da Paraíba, acenando com uma cadeira de deputado, mas o gaúcho, reto e direto, disse que preferia a farda. A bordo dela Geisel desembarcou na Presidência da República 40 anos depois.
Em 1936, Armando Sales saíra da condição de interventor para a de governador eleito. Zé Américo dava expediente como ministro do Tribunal de Contas da União. Estavam agora a 400 quilômetros de distância um do outro, mas o paraibano julgava ter certa vantagem porque trabalhava na Praça da República, a 3 quilômetros do Palácio do Catete, onde Getúlio despachava.
Ambos comemoraram o Réveillon de 1937 em grande estilo. Tinham uma campanha pela frente, com a eleição marcada para janeiro do ano seguinte. Sales deixara o governo de São Paulo para mergulhar de cabeça no seu projeto de candidato de oposição ao governo. Zé Américo conseguiu articular apoio entre os principais membros do governo, embora Getúlio nunca o tenha chamado de “meu candidato”. O champanhe do Réveillon virou vinagre em novembro, 3 meses antes do pleito, quando Getúlio anunciou o Estado Novo, um golpe que endureceu o regime e mandou para o cemitério as candidaturas de Armando e Zé Américo.
Sales recebera um sinal de Getúlio quando foi até o presidente informar da sua candidatura irreversível e ouviu dele que o Brasil vivia um clima de guerra e as eleições poderiam ser inoportunas naquele momento. Ofereceu a Sales o Ministério da Fazendo ou o Banco do Brasil, que o paulista recusou polidamente.
O golpe de Getúlio tinha até Constituição pronta, escrita e revisada por Francisco Campos, o famoso Chico Ciência que 30 anos mais tarde também deixaria suas digitais na Constituição de 1967 formatada pelos militares. Getúlio não queria Zé Américo e nem muito menos Armando. Para ele faltava ao paulista um certo jogo de cintura, que sobrava no paraibano. E ainda havia a ameaça de um golpe integralista, que Getúlio registra em detalhes em seu diário numa anotação de 1º de dezembro de 1937.
O Estado Novo veio depois de intensa propaganda anticomunista e uma fake news chamada Plano Cohen. Fechou o Congresso, acabou com os partidos políticos, censurou a imprensa e encheu as cadeias de adversários políticos. Zé Américo ficou no TCU até 1947, votou a ser ministro da Viação no segundo governo de Getúlio e morreu em 1980 aos 93 anos. Sales foi exilado, morou nos Estados Unidos e Argentina, voltou ao Brasil em abril de 1945, fundou a UDN e morreu em 17 de maio aos 57 anos.
De fato, 5 meses depois daquela anotação no diário, em 11 de maio de 1938, os integralistas tentaram invadir o Palácio Guanabara, residência oficial do presidente, com objetivo de matá-lo. O intenso tiroteio durou horas e terminou com um saldo de 8 mortos e Getúlio guardando seu parabélum na cintura e fumando um charuto enquanto se refazia da refrega.
O Brasil nunca foi para amadores. Getúlio inaugurou uma nova era dos profissionais com a Revolução de 1930. Não havia outra opção: era ele ou ele. A tentativa de renovação política feita por Armando Sales e Zé Américo tinha um perfil de centro, com Armando um pouco mais à direita e Américo mais à esquerda, sendo que no caso deste último muito mais por oportunismo que por convicção.
Nas últimas décadas nossos políticos resistiram o quanto puderam à renovação. Ela veio pela força em 1964, mas envelheceu e caducou em 20 anos, deixando que os adversários dos idos de 1950 voltassem ao protagonismo. O PT foi algo novo, mas Lula seguiu ao pé da letra a cartilha getulista e manteve as duas opções: ele ou ele.
O sistema moeu os inocentes, politizou o serviço público, a Justiça e as forças de segurança, a ponto de nos últimos anos juízes e procuradores ocuparem mais espaço na mídia falando de política que aqueles eleitos para isso. Tudo que um dia foi novo envelheceu rápido.
Bolsonaro, Lula, João Doria, Rodrigo Maia, ACM Neto, Gilberto Kassab, Guilherme Boulos, Davi Alcolumbre, Ratinho Junior, Fabio Faria, Flavio Dino e outros políticos chegaram lá pela legitimidade do voto. Os ministros do Supremo, delegados, procuradores da República, sindicalistas e tantos outros ganharam seu naco de poder pela influência, amizade e também, claro, pelo concurso público. Todos trabalham dioturnamente pela conquista e manutenção do seu lote de poder. Uns com mais competência, outros menos.
A diferença entre o Brasil de hoje e o de 90 anos atrás é que a política virou um balaio superpopuloso, com todo tipo de gatos, muitos deles gatinhos herdeiros. Temos um poder cada vez mais dividido, cada um cuidando de segurar seu espaço naquilo que vulgarmente chamamos instituições, mas que no fundo são ilhas onde cada um foca nos seus próprios interesses e a renovação virou pura demagogia. Aquela habilidade de tirar a meia sem tirar o sapato, já faz tempo entrou para o folclore do século passado.
Por Marcelo Tognozzi é jornalista e consultor independente há 20 anos. Fez MBA em gerenciamento de campanha políticas na Graduate School Of Political Management – The George Washington University e pós-graduação em Inteligência Econômica na Universidad de Comillas, em Madrid.