Opinião – A vacina, o medo e as explosões em Beirute

05/01/2021 12:17

Medo é arma poderosa contra nós mesmos

Semanas atrás recebi email de um leitor desapontado com meus artigos questionando a indústria farmacêutica e a vacina contra a covid-19. Aquele não era o primeiro comentário negativo que eu recebia, longe disso, mas ele teve um efeito diferente. “Péssimo”, ele escreveu. “Levanta dúvidas sobre as vacinas mas não oferece solução. O que essa escritora fará? Ficará em casa como eu estou em prisão domiciliar há nove meses ainda bem que sem tornozeleira? Francamente. Ver pessimismo em tudo e não acreditar na ciência desacredita quem escreve. Levante problemas específicos mas não venha com teorias terroristas para assustar incautos”.

Naquele momento, em um lapso de sabedoria que me ocorre com a frequência de ano bissexto, eu me coloquei no lugar daquele senhor e fiquei com pena dele –e uma certa raiva de mim. A pena que tive dele é porque ninguém em sã consciência escolhe ter medo. A raiva que tive de mim é que eu frequentemente esqueço disso, e incorro no erro de achar que quem tem medo de sair de casa foi contaminado com “covardi-19”.

O medo é uma força poderosa que domina e aleija. Ele é quase uma entidade, um parasita que se aloja e passa a controlar nossas ações. Mas eu acredito que o medo só se instala depois que o convidamos pra entrar, puxar uma cadeira e não reparar na bagunça. O que me incomoda é que eu posso ter ajudado a abrir essa porta. A coluna de hoje é uma tentativa de dirimir um medo que eu devo ter contribuído para aumentar. Resumindo o que vem a seguir: se você acredita que a vacina vai te proteger, eu acredito que você deve tomá-la. Na próxima coluna, pretendo tratar especificamente do efeito placebo, e de como ele transcende o poder de sugestão psicológica para ter efeito físico e incontestável. E esse placebo que funciona para curar, também funciona para adoecer.

Quando eu morava em Beirute, no Líbano, eu tive uma epifania, um momento de iluminação no qual um medo ajudou a me livrar de outro. Naquela época eu achava que tinha esclerose múltipla. Alguns dizem que hipocondria é medo de doença, mas tenho dúvidas sobre o sentimento que move a suspeita de que estamos enfermos. Em alguns casos, acho que hipocondria pode ter mais relação com querer do que temer algum problema de saúde. Nunca esqueço quando recebi resultados de um exame, tudo negativo, e uma amiga perguntou com toda a sinceridade do mundo se eu estava feliz ou decepcionada. Mas isso é uma digressão. O que interessa é que eu acreditava que tinha esclerose múltipla, e meu corpo obedeceu minha cabeça e foi me dando todos os sintomas necessários pra justificar minha convicção. Doente sim, louca não!

Mas como provar que eu tinha o que eu jurava ter? Saí à cata dos exames necessários. Meu neurologista não aguentava mais ver a minha cara, mas minha insistência quase destruiu seu juramento de Hipócrates. O homem foi pedindo exame que nem ele achava que eu devia fazer. Ali nesse processo minha estupidez já começou a interferir no meu diagnóstico, porque o que eu estava fazendo era me dando mais chance de ser vitimada pela iatrogenia.

Iatrogenia é quando adquirimos uma doença por causa da intervenção médica, e não a despeito dela. Isso pode acontecer a partir de vários tipos de intervenção: exames diagnósticos; excesso de zelo; testes que produzem falso positivo; medicamentos que curam uma doença e (frequentemente) causam outra etc. Eu no fundo acho que só queria uma resposta, uma certeza pra acabar com a dúvida que me consumia, mas fui afunilando as possibilidades pra chegar no diagnóstico que eu, Doutora Paula, já tinha me dado. Depois de várias ressonâncias magnéticas, eletrodos na cabeça e testes neurológicos interessantíssimos, eu agi em desacordo com os desejos do meu médico e me submeti a um dos exames mais invasivos que existem, um tipo de tortura medieval conhecido como punção lombar. Nesse procedimento, o médico enfia uma agulha com o diâmetro de um poço artesiano entre duas vértebras da espinha dorsal, e retira dali o líquido que circula pelo cérebro e pela medula espinhal. Fiquei sete dias de cama depois desse exame, e acho que minha pressão ortostática nunca mais foi a mesma. Conto tudo isso só pra mostrar que eu tinha tanto medo de uma doença degenerativa que o medo em si acabou por me degenerar. Em outras palavras: eu não precisava mais da doença para estar doente.

Essa inteligência, contudo, não me veio com naturalidade. Já fazia um bom tempo que o Líbano estava assustado com bombas e explosões. Na maior de todas, a que matou o primeiro-ministro Rafic Hariri, a janela da sala de aula onde eu estava a quase dois quilômetros da explosão foi estilhaçada com a mudança na pressão do ar. Eu vivenciei outras explosões, e examinei algumas de perto porque eu era correspondente da Radio France Internationale e do SBT. Mas um dia o governo decidiu decretar toque de recolher e eu decidi desobedecer e aproveitar o vazio das ruas pra fazer uma caminhada. Minha intenção era ouvir bossa-nova e mudar de estado de espírito urgentemente, antes que eu adquirisse um novo tique nervoso. Eu precisava entrar num ritmo calmo e me abstrair daquilo que já tinha virado a minha rotina. O problema é que alguns especialistas suspeitavam que a próxima bomba explodiria na área da Électricité du Liban, a companhia elétrica que ficava a algumas quadras da minha casa. “Seje homi, mulher!”, eu ordenei a mim mesma. Coloquei meu tênis, fone de ouvido e fui caminhar.

A pessoa corajosa, dizem os entendidos, não é aquela que não tem medo, mas aquela que controla o seu medo e o supera. “To superando”, eu pensei, enquanto ia andando mais rapidinho pra não passar por um carro bomba bem na hora que ele fosse explodir. Comecei a considerar a possível anatomia de um carro-bomba pré-explosão. “Será que só usam carro velho? Aquele carro ali parado tá enferrujado demais”, eu notei. “Como isso anda? E aquele ali, caríssimo assim estacionado na rua principal durante toque de recolher… O dono não tinha uma garagem?” E eis que o destino, o pai de todas as chacotas, ainda coloca no meu caminho um carro sem pneu. Imagina se isso não me deu mil ideias –a mais persuasiva de todas aquela que dizia que o carro tinha sido colocado ali pra dali nunca sair, ao menos não de boa vontade.

Pra resumir essa história, fui fazendo aquela caminhada com Stan Getz e Baden Powell mas os caras nem passaram pela minha cabeça, porque eu só queria saber de acertar qual carro ia explodir, e escapar dele. Até que no chacoalhar do meu trote o cérebro pegou no tranco e me dei conta que apressar o passo era besteira, porque enquanto eu me afastava mais rápido de um carro que não explodiu, eu me aproximava mais rapidamente de outro que poderia explodir. Pense na lógica disso, e na metáfora de vida que isso representa. Cheguei em casa vivinha da silva com uma nova convicção que iria acabar para sempre com meu medo da esclerose múltipla: a certeza de que eu tinha perdido uma hora de prazer por um medo que, ao contrário do medo evolutivo, não me protegeu de risco nenhum. O medo é uma ferramenta biológica fundamental pra nossa proteção, porque ele nos afasta de riscos. Mas o medo incontido nos afasta da vida.

Eu ainda não tinha certeza se era ou não portadora da doença, mas tive certeza de uma coisa: alimentar aquele medo era morrer um pouco todo dia. Quem tem a chance de vencer o medo da covid com uma vacina, deve sim tomá-la. Se uma vacina for tudo que você precisa pra voltar a viver e desfrutar da mágica da existência, então eu humildemente digo: tome a vacina, e seja livre e feliz. Pra terminar, queria resumir a mensagem de um dos únicos livros de auto-ajuda que já ganhei de presente, e que tinha uma tese tão lógica e auto-explicativa que nem precisei ler além das primeiras páginas. O livro chama O Poder do Agora, de Eckhart Tolle, e a mensagem é basicamente a seguinte: a gente pensa tanto no passado (que já se foi) e se preocupa tanto com o futuro (que pode nunca vir) que acabamos ignorando a única realidade que temos nas mãos, cujo nome já sugere seu milagre: o presente. Desejo àquele senhor que me mandou o email que ele viva a sua vida em plenitude, liberdade e alegria. Se é uma vacina que vai dar a ele tudo isso, que seja bem-vinda essa vacina, e que ele seja feliz, e tenha saúde, e ajude a espalhar essa bonança por onde passar.

 

 

 

 

Por Paula Schmitt é jornalista, escritora e tem mestrado em ciências políticas e estudos do Oriente Médio pela Universidade Americana de Beirute. É autora do livro de ficção “Eudemonia” e do de não-ficção “Spies”. Venceu o Prêmio Bandeirantes de Radiojornalismo, foi correspondente no Oriente Médio para o SBT e Radio France e foi colunista de política dos jornais Folha de S.Paulo e Estado de S.Paulo. Publicou reportagens e artigos na Rolling Stone, Vogue Homem e 971mag, entre outros veículos.

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