Opinião – Lei Mariana Ferrer, subjetividade e imunidade profissional

01/12/2021 06:27

”Em que momentos o advogado estará agindo sob a imunidade profissional e em quais momentos seu ato poderá configurar ofensa à dignidade da testemunha ou vítima?”

No dia 22 de novembro, entrou em vigor a Lei 14.245/2021, que promoveu alterações no Código Penal, no Código de Processo Penal e também na Lei dos Juizados Especiais (Lei 9.099/95). O novo instrumento normativo levou o nome de Lei Mariana Ferrer, fazendo referência ao processo de Santa Catarina no qual se apurava a ocorrência do crime de estupro de vulnerável supostamente praticado contra a influenciadora Mariana Ferrer, em 2018.

O caso teve grande repercussão e o vídeo da audiência em que a vítima foi ouvida foi amplamente divulgado. As condutas do advogado do acusado, do Ministério Público e também do juiz foram repudiadas por parte da comunidade jurídica e da população em geral, resultando na abertura de procedimentos nos órgãos de classe, a fim de apurar a conduta dos profissionais que participaram da audiência. Em resumo, a audiência teria fugido do padrão que se espera em atos processuais, tendo em vista que houve humilhação da vítima e constante provocação do seu desequilíbrio emocional, sem que os atritos e as provocações à vítima fossem impedidos pelo juiz.

De um modo geral, a nova lei busca coibir a prática de atos que atentem contra a dignidade da vítima ou mesmo de testemunhas durante as audiências. Dentre as alterações, houve a inclusão de uma causa de aumento de pena para o crime de coação no curso do processo, que será de um terço até a metade se o processo envolver crime contra a dignidade sexual. Além disso, pela redação da nova lei, em audiências de instrução e julgamento e no plenário do Tribunal do Júri, especialmente em processos que apuram crimes contra a dignidade sexual, “todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no ato deverão zelar pela integridade física e psicológica da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, cabendo ao juiz garantir o cumprimento do disposto neste artigo”. Ainda passaram a ser vedadas manifestações sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos que são objeto de apuração, além do uso de linguagem, informações ou material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas.

Processos em que se apura a ocorrência de violações sexuais são delicados, pelo fato de lidarem com a intimidade e a vida privada, seja da vítima ou mesmo do réu do processo. Assim, em processos dessa natureza, o cuidado no trato dos envolvidos é ainda mais necessário, principalmente pelo fato de que violências sexuais podem gerar danos psicológicos em quem sofreu essa grave violência. E, em tais casos, reviver os fatos durante o processo pode ser extremamente danoso à integridade psicológica da vítima da violência.

Em processos dessa natureza, o cuidado no trato dos envolvidos é ainda mais necessário, principalmente pelo fato de que violências sexuais podem gerar danos psicológicos em quem sofreu essa grave violência.

Ocorre que, mesmo antes da Lei Mariana Ferrer, em todo e qualquer tipo de processo é dever dos profissionais envolvidos (principalmente Ministério Público, advogados e juiz) o tratamento com urbanidade, respeito e de modo a se ater ao objeto do que se apura no processo. A Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Lei Complementar 35/1979) e o seu Código de Ética falam no dever de cortesia e de “tratar com urbanidade as partes, os membros do Ministério Público, os advogados, as testemunhas, os funcionários e auxiliares da Justiça”. No caso dos advogados, o Código de Ética e Disciplina menciona o dever de urbanidade, devendo o advogado tratar com respeito, discrição e independência o público, os colegas, as autoridades e os funcionários do Juízo. A Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (Lei 8.625/93) também traz como dever dos seus membros tratar com urbanidade as partes, testemunhas, funcionários e auxiliares da Justiça. Ou seja, a necessidade de respeito às vítimas, profissionais, testemunhas, réus e servidores é uma regra básica já existente.

O ponto que merece destaque diz respeito à necessidade de preservar a integridade psicológica da vítima em crimes sexuais e, para tanto, a lei especifica a proibição de manifestações sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração, bem como o uso de linguagem, informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas.

Quais seriam as informações e materiais que ofendem a dignidade? Qual seria a linguagem inadequada e ofensiva que estaria proibida? Essa definição ficaria a cargo do juiz que preside a audiência; ou seja, a nova lei abriu um espaço discricionário ao juiz, que avaliará no caso concreto a atitude ofensiva durante a audiência. Isso gera insegurança a respeito de como e quando a restrição será aplicada.

Há ainda outro ponto a ser considerado: o Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei 8.906/1994) elenca, no artigo que trata dos direitos do advogado, a chamada “imunidade profissional”, que assegura não constituir injúria ou difamação puníveis qualquer manifestação de sua parte, no exercício de sua atividade, em juízo ou fora dele, podendo ser aplicadas sanções disciplinares perante a OAB, no caso de excesso. A imunidade profissional diz respeito à própria profissão do advogado, que é conflitiva. Ou seja, muitas vezes a causa sob julgamento exige perguntas que, de alguma forma, podem ofender a honra da parte contrária (por exemplo, porque se quer demonstrar algo falso). Obviamente, as condutas excessivas serão responsabilizadas no âmbito disciplinar.

Portanto, como ficará a imunidade profissional para atos em que não haja excesso do advogado, e como isso se compatibiliza com a nova lei? Em que momentos o advogado estará agindo sob a imunidade profissional e em quais momentos seu ato poderá configurar ofensa à dignidade da testemunha ou vítima?

Há mais perguntas do que respostas, mas, em conclusão, é inegável que os profissionais que participam das audiências devem zelar pela urbanidade no tratamento com a vítima, testemunhas e demais profissionais, e isso já encontrava previsão legal. Isso inclui a sensibilidade ao tratar de casos delicados, como ocorre em processos envolvendo violência sexual.

A abertura discricionária trazida pela nova lei é problemática, no ponto em que traz mais dúvidas na sua aplicação prática. E isso se torna ainda mais sensível diante da necessidade de se definir como a legislação se compatibilizará com a imunidade profissional para determinados atos na advocacia. A questão é complexa, delicada e envolve a discussão de pautas essenciais na sociedade. De qualquer modo, a nova lei simboliza e reafirma a necessidade de respeito mútuo entre os participantes de audiências judiciais.

 

 

 

 

Por Ana Paula Kosak é advogada, mestre em Direito, especialista em Direito Penal e Criminologia, e professora convidada em cursos de extensão e especialização.

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