Opinião – A política raiz e o castigo para quem não se envolve na política

21/12/2021 06:00

”Somos intimados pelo Bem a nos engajarmos de algum modo na política”

Manifestantes fazem ato contra a corrupção e contra o governo na Avenida Paulista (Marcelo Camargo/Agência Brasil)| Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

“Não gosto de me meter com política”, disse Zeca Pagodinho certa vez, ao ser questionado sobre por que tinha evitado tirar fotos com um governador. É claro que, no caso, a cautela teve a ver com a preservação de sua imagem e carreira de cantor. Mas a frase dita por ele encontra eco também em uma vasta parcela da população brasileira que não poderia alegar pudores artísticos.

O ritmo da vida na sociedade moderna muitas vezes facilita que as pessoas se tornem politicamente passivas e até indiferentes em relação às ideias e decisões que afetam a coletividade. O brasileiro médio, em geral, tem um histórico de tender a ser apático ou neutro nas questões políticas. “Religião e política não se discute”, diz um velho adágio. Tal postura é adotada, às vezes, para evitar conflitos em família ou com os amigos – marca do “espírito conciliador” de que fala Roberto Gomes na sua Crítica da Razão Tupiniquim –, outras vezes, para se poupar de represálias do chefe, de um professor radical ou de forças políticas locais, ou simplesmente para não se incomodar.

Onde há novos coronéis, isto é, um certo grau de concentração de poder, autoritarismo e isolamento dos centros decisórios, isso é pior ainda. Acontece que o conceito moderno de “política”, como notou Norberto Bobbio, está estreitamente ligado à ideia de “poder” – quando deveria evocar mais as noções de “serviço público” e “deliberação comum”. Isso significa que o foco da política foi invertido na modernidade: tiraram-no do escopo do bem humano e da melhoria da vida em sociedade e voltaram-no para os mecanismos de poder como objetos de cobiça e, logo, como ferramentas de abuso e corrupção.

Por isso, o alheamento da política que, em certa medida, ainda caracteriza os brasileiros não é de todo incompreensível. Historicamente, onde reinaram elites fisiológicas e patrimonialistas, a posse do aparato de Estado foi tratada como um fim em si, algo desejável por si mesmo, para ser usufruído por seus detentores. Já na ótica dos trabalhadores comuns e empreendedores privados sem tentáculos na administração governamental, esta se tornou um monstrengo a ser, sempre que possível, evitado, limitado e reduzido. Tal visão é válida nos casos de hipertrofia e corrupção da máquina estatal, mas recai, por outro lado, no erro de ver as instâncias de governo como inimigas naturais da iniciativa privada e dos anseios pessoais, o que elas naturalmente não são. O abuso não tolhe o uso, já sabiam os antigos. E os poderes públicos, assim como a atividade política, são verdadeiros bens a serviço da sociedade sempre que empregados em favor do bem comum.

Entretanto, governos despóticos ou corruptos geram um ressentimento popular em relação ao Estado e à política, de maneira que muitos passam a somente pagar os impostos incontornáveis (para não terem problemas com o fisco) e, no mais, procuram passar longe de tudo o que cheire a política e governo. Benjamin Constant já notava no século 19 que, enquanto a liberdade dos antigos era entendida como uma liberdade positiva, que significava ser livre para discutir e participar diretamente das decisões da cidade, a liberdade dos modernos é uma liberdade negativa, que implica estar livre de vínculos indesejáveis com o governo e a coletividade, reclamando deles somente certas garantias para os direitos privados, de modo que cada cidadão possa se dedicar apenas aos seus interesses individuais e o Estado não o atrapalhe na persecução destes. Com efeito, o regime democrático-liberal representativo tira do cidadão o interesse e a responsabilidade pela condução dos destinos da sociedade, pois o faz pensar que basta o seu voto no candidato que lhe pareça o melhor.

Desta maneira, tanto a atividade dos políticos quanto a vida pessoal dos não políticos têm sido progressivamente destituídas do senso de comunidade. Criou-se quase que um abismo entre os interesses próprios e os dos outros. O serviço político enquanto cuidado do bem comum perdeu relevo na vida dos cidadãos; muitos deixaram de enxergar que estão aqui nesta vida também para servir aos outros e não apenas a si mesmos. Claro, a passividade, a evasão, a indiferença e o laissez-faire político são tentações constantes para quem está imerso nos próprios negócios; o trabalho em prol do bem comum requer sacrifícios, empenho e generosidade. Emergiu, então, o mundo do “cada um por si e [apenas] Deus por todos”, um mundo de motivações sempre egoístas e de incessante competição por vantagens e privilégios. Daí, não espanta que hoje se fale tanto em direitos e tão pouco em deveres. Em A Soberania do Bem, a filósofa irlandesa Iris Murdoch recorda que “uma filosofia que deixa o dever sem contexto e exalta a ideia de liberdade e poder como um nível separado de valor ignora sua tarefa e obscurece a relação entre virtude e realidade”.

Consequentemente, a proliferação do aparelhamento institucional por ativistas, ou o predomínio de ideias que não correspondem ao parecer comum, mas apenas ao de uma minoria de revolucionários, deve-se muito à inibição dos cidadãos conscientes. Não existe vácuo na política; se os cidadãos mais sensatos e bem dispostos não ocupam o seu devido espaço, não procuram influir e participar das decisões do Estado, outros menos cônscios e nem sempre bem-intencionados acabam por fazê-lo. A nossa inércia na defesa da justiça e dos sagrados princípios da civilização cristã fatalmente resulta em sérios prejuízos ao bem comum e aos legítimos direitos e deveres da pessoa humana. A omissão do bem é sinal certo de derrota para os bons. Esta inatividade, que tem origem numa preguiça mental ou na inércia da vontade, verifica-se também em cidadãos que são honestos, inteligentes e de bons princípios, mas têm pouca ou nenhuma iniciativa na vida pública. E isso precisa mudar.

O princípio da participação

Tenho visto com esperança o surgimento de novos grupos e canais de formação e mobilização política nos últimos anos. Felizmente, temos visto crescer no Brasil um promissor movimento popular de reação contra a corrupção e um fantástico despertar de muitas pessoas para a importância de tomar parte ativa e organizada no debate político. Creio que, em comparação com a geração dos nossos avós, hoje existe menos gente achando que a política é algo para se pensar apenas em época de eleições, e menos eleitores votando de forma irrefletida e negligente em relação à probidade dos candidatos e às questões atinentes ao bem comum.

É claro que nós ainda precisamos aprimorar as instituições para torná-las mais justas e representativas, bem como aprender a nos organizar melhor enquanto sociedade civil, a atuar politicamente de forma mais coesa e efetiva, a ocupar espaços e posições estratégicas que nos permitam servir à pátria e defender os valores nos quais acreditamos. No entanto, muitas boas iniciativas já têm surgido. Temos visto um número crescente de brasileiros querendo se envolver, dar a sua contribuição, participar de associações cívicas, inserir-se no mundo da política. Muitos voltaram a entender esse engajamento como um dever pátrio e uma missão à qual todos somos chamados.

É claro, por outro lado, que não basta “democratizar geral” e facultar uma ampla participação popular na política para assegurar o bem comum. O bem real de um povo nem sempre é idêntico ao parecer da maioria, assim como não coincide sempre com o parecer de especialistas, artistas, influencers e autoridades. É a natureza das coisas que nos diz o que é certo e bom, não a opinião dominante. Como reiterava Leo Strauss, uma lei sancionada por uma cidade não pode tornar bom para ela aquilo que, na verdade, lhe é nocivo e fatal. As modas não fazem a moral. Ao mandar incendiar Roma para depois botar a culpa nos cristãos, Nero não poderia ter se justificado com o argumento de que a piromania se tornara parte de uma nova tendência, ou de um novo gênero – “pirossexual” – que todxs deveriam tolerar. As opiniões dominantes, assim como as leis e demais convenções políticas, são incapazes de criar novos valores reais e só são justas na medida em que contribuem de fato para o bem comum, cujo parâmetro é o direito natural dos povos e as condições imutáveis da realização humana.

Para resgatar o bem comum como meta e base de ação política é preciso, em primeiro lugar, esclarecer e mobilizar a população. Sim, o primeiro passo para consertar a política passa por restaurar a cultura política do povo. O passo seguinte consiste em determinar critérios límpidos e bem sopesados, ancorados nos princípios norteadores que temos resgatado, para avaliar os candidatos nas eleições, para pesquisar e conhecer as posições defendidas por eles – inclusive as que defendiam muito antes do pleito –, medir a consistência das suas palavras e o grau de coerência pessoal deles com aquilo que pregam.

Porém, precisamos explicitar que a nossa atuação cidadã não pode se limitar aos posts e comentários nas redes sociais e tampouco à escolha na hora do voto. Também em nossas atitudes diárias, em cada postura assumida e troca de ideias, nós precisamos fazer valer a autêntica justiça social que perfaz a política do bem comum e transcende as ideologias e modas de cada tempo. Rejeitar a prática viciosa de tirar vantagem de tudo e de todos seria, para alguns, um bom começo. Precisamos também estimular nas pessoas o hábito de acompanhar mais amiúde quais projetos o parlamento está votando, como o Judiciário está julgando e o que o Executivo está fazendo. Já dizia Arnold Toynbee que o maior castigo para os que não se interessam por política é serem governados pelos que se interessam.

O papa Francisco afirmou certa vez que “para o cristão, é uma obrigação envolver-se na política”, de modo que “nós, cristãos, não podemos fazer como Pilatos, lavar as mãos. Não podemos!” Além do mais, se somos chamados a ser “sal da terra e luz do mundo”, já basta de esconder a nossa chama debaixo de um vaso. Em vez disso, precisamos recrutar a nossa coragem para assumir um vivo engajamento político em favor do bem comum, atitude esta que é a porta para o nosso desenvolvimento social e para a nossa realização humana na dimensão cívica. Só por esse caminho é que resgataremos a verdadeira política raiz naquilo de melhor que ela tem para oferecer ao nosso povo e desenvolvê-lo.

Há ainda um componente fundamental nessa receita para fazer crescer a participação política nas nossas comunidades: a bondade, ou, para ser mais exato, o amor fraterno. Sim, só o amor pelo próximo e, por extensão, o amor pela boa política servidora do bem comum poderão redimi-la aos olhos da nossa geração. Murdoch, novamente, diz que “o eu, o lugar onde vivemos, é um lugar de ilusão. A bondade está vinculada à tentativa de ver o ‘não eu’, de ver e responder ao mundo real à luz de uma consciência virtuosa. […] E se olharmos para fora do eu, o que veremos são intimações dispersas do Bem”.

É isso. Somos intimados pelo Bem a nos engajarmos de algum modo na política. Pois só quando tivermos cidadãos participantes, eleitores conscientes, movimentos atuantes e uma constelação de magistrados, governantes e parlamentares vivendo para a política e não da política – isto é, para o serviço público e não dos privilégios que o poder público lhes oferece – é que o Brasil estará no caminho de se tornar uma nação desenvolvida social, política e economicamente. E só quando for capaz de vislumbrar esse novo país é que o nosso povo começará a ver com olhos mais simpáticos a política, essa atividade de extrema importância, mas ainda tão desprestigiada nos nossos dias.

 

 

 

 

Por Valdemar Bernardo Jorge é professor, advogado, mestre em Direito Econômico e Social e secretário de Planejamento e Projetos Estruturantes do estado do Paraná.

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