Opinião – O monopólio da verdade é incompatível com a liberdade

”Em que momento censurar previamente alguém é defender a democracia? O devido processo legal foi abolido em nome do combate às notícias falsas?”, questiona Ismael Almeida

25/02/2022 06:03

”A pretexto de combater notícias falsas, muitos têm cedido ao desejo autoritário de cercear a liberdade de expressão”

Sede do STF, em Brasília| Foto: Nelson Jr./STF

O combate às chamadas fake news é a nova coqueluche mundial, e é objeto do discurso politicamente correto de líderes engajados mundo afora. Mas o que são fake news? Elas podem ser definidas como desinformação ou boato distribuído de forma intencional, via meios de comunicação, oficiais ou não. Em português claro, nada mais são do que notícias falsas, fofocas ou boatos, que são práticas existentes desde os primórdios da comunicação humana.

Sabemos que a mentira só pode ser combatida com a verdade. Mas, com o desenvolvimento das relações humanas e o surgimento das primeiras sociedades organizadas, a desinformação era cada vez mais difícil de ser desmentida. Isso gerou a necessidade de que houvesse uma referência, alguém com credibilidade reconhecida por aquele grupo social, que desse uma versão oficial dos fatos que seria aceita por todos. Com o advento da criação do Estado, esse ente passou a exercer esse papel e deter o monopólio da verdade.

Porém, o poder de dizer o que é verdade deu a muitos tiranos a chance de calar vozes que colocassem em xeque as suas versões sobre os fatos, sobretudo aqueles fatos cujas versões reais lhes eram incômodas, ou atrapalhariam seus planos de poder. Isso é verificável quando analisamos o surgimento dos regimes totalitários. Uma das primeiras ações dos ditadores era censurar a livre manifestação de pensamento e centralizar a informação nos meios de comunicação controlados pelo governo. Assim, o tirano passava a determinar a narrativa e, em alguns casos, até reescrevia a história a ser contada dali por diante.

Com o passar dos anos e o avanço da tecnologia, observou-se uma revolução no acesso à informação. As redes sociais furaram essa bolha e permitiram que pessoas comuns começassem a fazer suas próprias análises, críticas, reflexões e questionamentos a partir de informações que recebem de outras fontes não oficiais. Desde coisas triviais do cotidiano até assuntos que antes eram restritos a uma elite, como o debate mais sofisticado sobre política, que vai muito além do mero ato de votar numa eleição.

A análise desse contexto é importante para entender a preocupação atual em torno das notícias falsas. De alguns anos para cá, a profusão de informações circulando livremente começou a ser um problema para os habituais formadores de opinião. Eles perderam o monopólio da verdade. Para alguns deles, é inadmissível que um cidadão comum tenha condições de se informar corretamente sem recorrer ao filtro de credibilidade que eles se autoconcederam.

Alexandre de Moraes e o Judiciário “editor” nas eleições (editorial de 31 de outubro de 2021)
Por óbvio, não se pode desconsiderar que uma notícia falsa hoje tem o poder de se alastrar muito mais rapidamente nos meios virtuais. Por isso mesmo, o dano à imagem da vítima de uma notícia falsa é muito mais efetivo e, portanto, de difícil reparação. Porém, a nossa legislação já prevê os tipos penais de calúnia, injúria e difamação, além de outros crimes mais graves que também podem ser cometidos pela internet.

Ocorre que, a pretexto de combater notícias falsas, muitos têm cedido ao desejo autoritário de cercear a liberdade de expressão. Querem atribuir a esse problema um tamanho maior do que realmente tem, a fim de criar um pretexto para silenciar vozes que desnudam verdades inconvenientes. É uma forma de tentar retomar o monopólio da verdade, ainda que seja pelo medo, tal qual os ditadores do passado.

E essa ameaça autoritária é mais perigosa quando ocorre no contexto de disputas eleitorais. Parece um contrassenso, mas burocratas não eleitos estão ditando o que pode ou não ser dito por aqueles que buscam conquistar a representação popular pelo voto. Isso é temerário, pois pode produzir efeitos para fora do debate eleitoral e distorcer a vontade popular. Essa discussão é delicada e complexa, e por isso deve ser enfrentada de maneira responsável, para que não haja a relativização de direitos e garantias fundamentais.

Em que momento censurar previamente alguém é defender a democracia? Não seria essa uma das ações mais antidemocráticas que existe, e que por isso é vedada pela Constituição? Quando passou a ser normal pessoas – inclusive jornalistas – serem presas no âmbito de inquéritos opacos, eivados de ilegalidades, sem acusação formal de crime, sem que advogados tenham acesso aos autos, sem que haja uma delimitação do objeto da investigação, e que subvertem a lógica da persecução penal? O devido processo legal foi abolido em nome do combate às notícias falsas?

Essa batalha quixotesca não pode servir de biombo para esconder afrontas ao livre pensamento, à liberdade de imprensa e, sobretudo, ao direito de questionar. Uma nação livre e democrática não pode tolerar isso. A verdade não pode mais ser monopólio de ninguém! Sobretudo daqueles que violam liberdades democráticas com o pretexto de resguardá-las.

 

 

 

 

Por Ismael Almeida é consultor político e especialista da Fundação da Liberdade Econômica.