Opinião – A classe média como política de estado

”No Oriente o exemplo da China é assombroso. Há 40 anos, pouco mais de 20% da população morava nas cidades; hoje, mais de 60%. Em igual período, 800 milhões de pessoas foram retiradas da pobreza”, escreve Vinicius Lummertz

16/03/2022 05:45

”Nas últimas quatro décadas o governo federal foi ocupado pela centro-direita e centro-esquerda com avanços evanescentes”

Imagem: divulgação

Pouco antes da eclosão da pandemia, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) publicou o estudo Under Pressure: The Squeezed Middle Class (Sob Pressão: a classe média espremida). O resumo: uma classe média forte e próspera é fundamental para qualquer economia bem-sucedida e sociedade coesa. Sustenta o consumo, impulsiona grande parte do investimento em educação, saúde e habitação e desempenha papel importante no apoio aos sistemas de proteção social por meio de suas contribuições fiscais (impostos). Nações com uma classe média forte têm baixa criminalidade, níveis mais altos de confiança e satisfação com a vida, além de maior estabilidade política e boa governança.

O Brasil está mal nesta foto. A classe média diminui com consequências cada vezes mais críticas. Se serve de consolo – não deveria – outros países enfrentam o mesmo problema: nos últimos 30 anos, em uma ponta houve o achatamento dos salários e empregos; na outra, o aumento nos custos sensíveis, como habitação, saúde e educação.

É possível identificar pelo menos dois momentos recentes em que esta situação transbordou no Brasil: nas manifestações de 2013 e nas eleições de 2018. Há nove anos, a reação violenta ao aumento no transporte público – “não é pelos R$ 0,20” – migrou para outras pautas; há quatro anos, a negação da política que desviava recursos públicos, exposta na Lava Jato, fez emergir os “outsiders” da política.

A função do governo é criar e sustentar as condições para que a sociedade, de forma ampla, se desenvolva. É grande a distância entre esta definição e a realidade brasileira. Se até 2019 em 27% dos lares de classe média os gastos eram maiores que as receitas (segundo a OCDE), a pandemia piorou a situação: concentrou os resultados do crescimento nas mãos dos mais ricos e empobreceu quem já tinha pouco. Na classe média o torniquete deu mais uma volta.

Esta deficiência é estrutural. Nas últimas quatro décadas o governo federal foi ocupado pela centro-direita e centro-esquerda com avanços evanescentes. Antes, 20 anos com militares que malograram.

A busca por um equilíbrio mínimo, objetivo premente e permanente, reforça a importância das gestões públicas e, olhando o retrospecto nacional, escancara os motivos de hoje sermos tão desiguais: cinco séculos de existência oficial baseada na exploração. Dos recursos naturais, de ciclos produtivos à exaustão, do ser humano.

Se o Brasil cresceu, por que a situação de grande parte da população é quase desumana? Porque o desenvolvimento social depende mais da diminuição da desigualdade que do crescimento econômico. Os bons resultados ficaram concentrados entre os mais favorecidos, legando pouco a quem mais precisa.

A cultura do curto-prazismo circunscreve a desigualdade a um slogan de campanha eleitoral. Não bastasse a crueldade, a situação impede que o Brasil decole. Sem políticas claras e perenes de desenvolvimento social não há sequer a formação de um mercado de consumo.

Sem consumo interno, o capital se defende e busca o mercado externo que, por seu turno, tem interesse em commodities, realimentando a sina do Brasil produtor de baixo valor agregado, necessidade cada vez menor de mão de obra (empregos substituídos pela mecanização) e sujeito a oscilações. Nas crises globalizadas, ou nos principais compradores, ficamos sem opção: não temos mercado interno, tampouco externo.

A criação de uma classe média forte e que não se limite a “comer frango ou iogurte” funcionaria como um seguro, além de dar mais robustez para a economia nacional. Hoje o consumo interno responde por 60% do Produto Interno Bruno (PIB). Há, assim, pelo menos 25 pontos percentuais a serem buscados, se quisermos usar como referência os Estados Unidos, parâmetro para quase todas as comparações, onde o consumo interno é 85% do PIB.

O ponto é: como fazer isso? Como incentivar o consumo e estancar o esgotamento da classe média em um Brasil com 12 milhões de desempregados e baixa produtividade?

Parte da resposta é escolher em outubro próximo representantes que não se limitem a “trabalhar para diminuir as desigualdades”. Isso é vago, escapismo e diz pouco. Precisamos de um plano robusto e corajoso que envolva justiça tributária (não é mais possível esse peso sem retribuição sobre quem tem menos condições de se defender), diminuição do peso do estado, investimento em educação de forma ampla e visando suprir deficiências que infelizmente os trabalhadores trazem desde escola primária, crédito que resulte em empreendedorismo e desenvolvimento não em endividamento. Cuidar de saúde e moradia.

Os quatro anos de uma gestão serão suficientes? Não. Porém temos que começar. Sabemos como fazer política pública de longo prazo. O que é o Auxílio Brasil de hoje se não o Bolsa Escola ou a proposta de renda mínima, ambos surgidos há 30 anos? Ou o Sistema Único de Saúde (SUS) que deu show de eficiência no enfrentamento da pandemia, oficialmente criado em 1990.

O Brasil não teve o “welfare state” europeu, com raízes no século 19 e potencializado pelo impacto das duas grandes guerras que elevou os padrões mínimos de saúde, educação e habitação ao status de direitos dos cidadãos. Não foi uma intervenção do estado, mas uma política, uma diretriz – e uma resposta aos reclamos da população. Em parte, para fazer frente ao avanço das ideias socialistas, principalmente em países onde o liberalismo econômico criava repercussões negativas para a política, cevando a desigualdade.

No Brasil daquele período passamos perto com as medidas iniciais de Getúlio Vargas que, não por outro motivo, acabou carimbado como o “pai dos pobres”.

No Oriente o exemplo da China é assombroso. Há 40 anos, pouco mais de 20% da população morava nas cidades; hoje, mais de 60%. Em igual período, 800 milhões de pessoas foram retiradas da pobreza. No campo social as decisões em Zhongnanhai têm variações, mas seguem claras: o fomento a uma classe consumidora urbana estabelecida, que progride e tem acesso ao consumo e aos benefícios e confortos da tecnologia, são a base da estabilidade.

A China é pragmática. Sabe que a sustentação estará garantida enquanto a classe média prosseguir em evolução e com perspectivas positivas, como preconizado pela OCDE: “nações com uma classe média forte têm maior estabilidade política”. Perto de completar 200 anos independente é hora de o Brasil começar a saldar essa dívida.

 

 

 

 

Por Vinicius Lummertz, secretário de Turismo e Viagens do Estado de SP, ex-ministro (Temer) e ex-presidente da Embratur (Dilma)