Opinião – O mundo em queda (quase) livre

”A mentira, ou que se convencionou chamar de Fake News, permite ou surge da criação de universos virtuais ou mundinhos paralelos. Virou moda palavras como megaverso, multiverso e metaverso, a mais usual”, escreve Edvaldo Santana

16/03/2022 05:55

”Raramente são utilizadas nos termos da física quântica, que admite mais de um universo real”

Lutar para livrar-se do despotismo faz parte da história recente da Ucrânia. Para os ucranianos, libertar-se da tirania russa é sinônimo de progresso e de futuro promissor, daí a dificuldade de recuar. Em 2013, virou profunda decepção a esperança de ingressar na União Europeia. Viktor Yanukovych, aliado de Moscou, mas eleito com a promessa de integração com a Europa, logo mostrou que sua proposta era Fake News. Os russos, e seus aprendizes, sabem como lucrar com isso. Dia 22 de fevereiro de 2014, depois de 93 dias e 125 mortos civis, quase todos muito jovens, a revolta da população resultou na renúncia de Viktor Yanukovych, que fugiu para Moscou.

Passados exatos nove anos, a retaliação. Os ucranianos voltam ao pesadelo na sua forma mais cruel, e pela mesma razão, desta vez mais odiosa. Vladimir Putin, tirano russo, não aceita que a Ucrânia faça parte da União Europeia, tampouco da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Nesse jogo, seus vizinhos precisam ser dependentes. É a dependência como fonte de poder.

Lembrei do fim dos anos 1990, quando Nash, Harsanyi e Selten já tinham recebido o Nobel da Economia, por suas contribuições à teoria dos jogos. Na disciplina de Teoria da Decisão, para alunos de mestrado e doutorado, costumava usar um dado exercício, com variações. Era um torneio hipotético de futebol que envolvia duas partidas e quatro clubes: Corinthians, Flamengo e os vencedores da série C de Sergipe e de Roraima. Os dois primeiros detinham a prerrogativa de escolher com quem jogariam na semifinal. Para quase 100% dos alunos, a melhor decisão seria o Flamengo e o Corinthians só se enfrentarem na final. Era uma estratégia dita dominante. A chance de um desses dois clubes vencer o torneio seria 50%.

Mas não era verdade. Era tão somente uma estratégia covarde, como a do valentão do bairro, que só espanca os mais fracos. Ou daqueles cuja coragem depende da posse de armas. Na prática, os dois outros times eram tão mais fracos que, para os mais fortes, a probabilidade de vencer o torneio era sempre 50%, independentemente do adversário na semifinal. Enfrentar primeiro o mais fraco só garantia o vice-campeonato. Moral da história: quem quer mesmo ser campeão não escolhe o adversário. Esta, sim, uma estratégia vencedora. E corajosa.

Qual a relação entre a escolha desses alunos e a estratégia de Putin de, com uma guerra, dominar a Ucrânia? São várias as relações. A covardia é a mais visível. Se o objetivo do russo era manter sua liderança bélica na região, um caminho razoável seria negociar termos de adesão mais equilibrados com a OTAN e a União Europeia, que também são fortes.

Depois, a Rússia, para atrair a Ucrânia e outros, poderia incentivar a criação de um bloco comum, nos moldes da União Europeia. A democracia deveria prevalecer, com eleições livres e diretas. Todos cresceriam. O estado de bem-estar social seria o objetivo. Porém, tal prática é incomum no regime opressor. A tirania pressupõe o poder ilegítimo e o domínio físico pela arbitrariedade, como nas milícias, estatais ou não.

Ademais, como, para Putin, o que interessa é a opressão, ele também errou na escolha do oponente. Não se deu conta de que seria necessário vencer antes adversários também fortes. A estratégia, então, teria que ser outra, e não a do valentão, de agredir o mais vulnerável.

A retaliação, via sanções e restrições impostas ao invasor, foi imediata, e parece eficaz. Mas tem efeitos colaterais. Todos, e não só os russos, sofreremos com o “olho por olho”.

No “dilema do prisioneiro”, clássico da teoria dos jogos, a retaliação, ou o “tit for tat”, embora todos percam um pouco, é uma estratégia dominante e de equilíbrio. Para Robert Axelrod, ela é também uma estratégia vencedora, mas como alternativa à cooperação, onde todos ganhariam.

Sendo ou não bem-sucedida ao invadir a Ucrânia, mais cedo ou mais tarde, a Rússia também retaliará. Com isso, a desconfiança passará a compor a conduta das outras partes, o que tende a perpetuar os efeitos de retaliações anteriores. Com um agravante: a mentira, ou arte de iludir com notícias falsas, atuará como acelerador das retaliações.

Cabe, no caso, a metáfora da taça com vinho tinto. Vista a olhos nus, parece ter conteúdo uniforme e homogêneo. Olhada com microscópio, percebe-se que há moléculas de água, de taninos, álcool e outros. São múltiplos universos. Mas todos bem reais.

A mentira, ou que se convencionou chamar de Fake News, permite ou surge da criação de universos virtuais ou mundinhos paralelos. Virou moda palavras como megaverso, multiverso e metaverso, a mais usual. Mas raramente são utilizadas nos termos da física quântica, que admite mais de um universo real.

Os falsos universos virtuais tornaram-se estratégia para muitos. E vencedora em alguns casos bem conhecidos. Putin é um ás na matéria. É o que faz quando tenta convencer o mundo de que o governo da Ucrânia é nazista. Ele nem liga para o fato de o presidente atual ser um judeu. Faz o mesmo quando diz que as bombas jogadas em alvos civis foram obras das forças ucranianas.

É sintomático que na Alemanha, líder da União Europeia, tenho sido despertado o interesse pelo aumento dos investimentos em suas forças armadas. Outros também o farão. O sentimento foi de despreparo diante de um forte adversário – que sabe iludir.

É como se, por um prazo não previsível, a estratégia de retaliação, ou de desconfiança em virtude dela, generalizasse os riscos políticos, com uma guerra sempre iminente. Em tal quadro, os riscos darão lugar às incertezas, sobretudo às de natureza econômica, daí a queda (quase) livre. Temos que pensar além do “olho por olho”. Não há outro caminho.

 

 

 

 

Por Edvaldo Santana é doutor em engenharia de produção e professor titular aposentado do departamento de economia da UFSC.