Opinião – Nenhuma democracia séria do mundo defende o voto obrigatório

Mas não seria muito mais simples, nesse caso, o sujeito ficar em casa, ou fazer o que lhe der na telha, como ocorre em todos os países realmente democratas? É óbvio que sim.”, escreve J.R. Guzzo

07/04/2022 06:17

”Vivemos sob o comando de ditadorzinhos. Este é o Brasil 2022.”

De todas as deformidades impostas ao Brasil pela Constituição de 1988, poucas são tão estúpidas quanto o voto obrigatório. O que se entende por “democracia brasileira”, como nos provam todos os dias o ministro Alexandre de Moraes e seus colegas do Supremo Tribunal Federal, é apenas uma contrafação – basicamente, uma salada de regras que dá poderes de ditador (e nenhuma responsabilidade) a gente como eles e outros ocupantes dos galhos mais altos da máquina do Estado.

É inevitável, assim, que se multipliquem como ratos os assaltos do aparelho estatal às liberdades individuais dos cidadãos. Um deles, o voto obrigatório, tornou-se especialmente absurdo neste momento, em que o naufrágio da terceira via entre Bolsonaro e Lula está deixando muita gente sem candidato para as eleições presidenciais de 2022. As pessoas não querem votar em ninguém. Mas são obrigadas a ir até a seção eleitoral para apertar o botão de uma máquina que mostrará, se tudo correr bem, que elas não querem votar em ninguém.

Por que raios o cidadão tem de votar se ele não quer votar em nenhum dos candidatos disponíveis? Já é um delírio, do ponto de vista puramente mental, que alguém seja obrigado a exercer um direito – é mais ou menos como obrigar o sujeito a se casar, ou a ir à missa, ou a guiar um carro. Direito é uma coisa, obrigação é outra: direito é sair de casa quando você quiser, obrigação é pagar imposto.

Mas os pais da pátria que empurraram essa Constituição para cima do Brasil misturaram de propósito as duas coisas. De um lado, queriam obrigar as pessoas a votar para explorarem, em seu favor, a ignorância maciça da maior parte dos eleitores. De outro, quiseram criar mais um mandamento para reforçar a situação de vassalo que o cidadão brasileiro tem em relação ao Estado.

Não há nada mais hipócrita do que ouvir um magnata que anda por aí dando entrevista, ou um “cientista político”, ou um desses editoriais edificantes que a imprensa publica sobre o voto obrigatório. Todos dizem que a obrigação de votar “protege” e “melhora” a democracia. Mentira. Ele apenas protege e melhora a vida dos que, de um jeito ou de outro, mandam na máquina pública – ao impedir que abstenções extremas deixem claro o desprezo fundamental da população brasileira por seus políticos e suas instituições. Não existe voto obrigatório em nenhuma democracia séria do mundo. Por que teria de existir no Brasil?

Neste momento, o que a Constituição e as elites que mandam na vida pública estão impondo é um disparate. “Você, que não quer votar em nenhum dos candidatos, tem o direito de votar em branco ou anular o seu voto”, dizem. “Não perca a oportunidade de exercê-lo no dia da eleição, sob pena de multa e de outras perseguições mesquinhas por parte dos agentes do Estado”.

Mas não seria muito mais simples, nesse caso, o sujeito ficar em casa, ou fazer o que lhe der na telha, como ocorre em todos os países realmente democratas? É óbvio que sim. Só que aqui não pode ser assim, porque nós temos uma “Constituição Cidadã”. Nosso direito é obedecer. Vivemos sob o comando de ditadorzinhos. Este é o Brasil 2022.

 

 

 

Por J.R.Guzzo é jornalista. Começou sua carreira como repórter em 1961, na Última Hora de São Paulo, passou cinco anos depois para o Jornal da Tarde e foi um dos integrantes da equipe fundadora da revista Veja, em 1968. Foi correspondente em Paris e Nova York, cobriu a guerra do Vietnã e esteve na visita pioneira do presidente Richard Nixon à China, em 1972. Foi diretor de redação de Veja durante quinze anos, a partir de 1976. Nos últimos anos trabalhou como colunista em Veja e Exame.