A legislação brasileira já trata de condutas e reprimendas para aqueles que excedem a sua liberdade de expressão e cometam crimes, assim, completamente desnecessária a criação deste conselho, escreve Thaméa Danelon
14/04/2022 07:31
”É indiscutível que nenhum direito é absoluto, ou seja, em determinadas situações inúmeras garantias podem ser mitigadas, como a própria liberdade de expressão”
O projeto das fake news (PL 2.630/20) foi apresentado pelo senador Alessandro Vieira (PSDB-SE) com o propósito de instituir uma lei de liberdade, responsabilidade e transparência na internet. O PL apresenta mais de 30 artigos, contudo, somando-se todos os parágrafos e incisos tem-se o expressivo número de mais de 90 dispositivos da lei, ou seja, um PL completamente extenso, prolixo e subjetivo, o que seria disfuncional, pois uma lei adequada e boa é aquela composta de poucos artigos, com normas curtas, claras e objetivas.
Quanto mais uma lei “fala”, quanto mais diversos são os assuntos tratados, mais teremos uma ampla margem para subjetivismos, paradoxos e pouca compreensão, impedindo, assim, que a norma seja entendida de forma adequada pela população e possibilitando também uma “interpretação” – e possivelmente alteração – pelo Judiciário.
Esse projeto de lei, de acordo com seu texto, visaria garantir “a ampla liberdade de expressão, comunicação e manifestação do pensamento” e também o “impedimento da censura” no ambiente online. Entretanto, tais objetivos já estão escritos na Constituição Federal em seu artigo 5º, incisos IV, e IX, ao prever, respectivamente, ser livre a manifestação do pensamento e a expressão da atividade intelectual, independentemente de censura ou licença.
Logo, havendo a previsão desses direitos fundamentais no texto constitucional, não há qualquer necessidade de uma nova lei para “assegurar” direitos já previstos na carta magna e que são inerentes a qualquer brasileiro ou estrangeiro residente no país.
No que se refere ao conteúdo da lei, alguns pontos devem receber atenção: o PL diz que a referida lei tem como objetivo o “fomento ao acesso à diversidade de informações na internet”, entretanto nos parece que o PL visa exatamente o contrário, pois traz limitações à livre manifestação do pensamento, quando, em seu artigo 9º, pretende que os provedores de internet limitem o número de encaminhamento de uma mesma mensagem a usuários ou grupos.
Qual seria a lógica dessa limitação? Por que uma mensagem através de aplicativos não poderia atingir mais de cinco usuários? A quem interessa limitar o número de membros de um grupo de aplicativos de mensagens? Essa determinação não estaria de acordo com os preceitos constitucionais de liberdade de expressão e de livre manifestação do pensamento, mas estaria caminhando de mãos dadas com as limitações ao livre pensar, tolhendo as pessoas de difundirem suas ideias e convicções.
O artigo 11º desse projeto de lei proíbe a comercialização de ferramentas voltadas para o encaminhamento em massa de mensagens, e determina que o encaminhamento em massa ocorre quando a mensagem for enviada para cinco ou mais pessoas. Como o pequeno número de cinco indivíduos pode ser considerado uma “massa”? Além disso, qual seria a justificativa para se proibir ferramentas que possibilitem impulsionamento para grandes grupos? Essa limitação estaria fomentando a liberdade de expressão ou a limitando?
Um outro ponto que reputo delicado é a criação de um conselho que realizaria estudos, pareceres e recomendações sobre a liberdade e responsabilidade na internet. Esse conselho seria formado por 21 membros, sendo indicados pelo Senado, Câmara dos Deputados, CNJ e CNMP, dentre outros. Analisando-se as atribuições desse conselho, percebe-se que seria muito semelhante ao Ministério da Verdade (embora na prática este fosse um verdadeiro tribunal da mentira e de alteração da história) existente na obra 1984 de George Orwel.
Além de limitar a constitucional liberdade de expressão, o aludido conselho traria uma ampla burocracia repleta de subjetivismos, pois não cabe ao Estado definir o que pode e o que não pode ser postado nas redes sociais. É indiscutível que nenhum direito é absoluto, ou seja, em determinadas situações inúmeras garantias podem ser mitigadas, como a própria liberdade de expressão, pois nossa legislação não admite, e de forma acertada, divulgação de conteúdos nazistas, racistas, ameaçadores ou que ataquem a honra do indivíduo; e caso ocorram práticas como essas já há previsão da ocorrência de diversos crimes com as consequentes punições.
Desta forma, a legislação brasileira já trata de condutas e reprimendas para aqueles que excedem a sua liberdade de expressão e cometam crimes, assim, completamente desnecessária a criação deste conselho que, seguramente, caso aprovado, resultará em elevação de gastos públicos e em um controle nada democrático à livre manifestação do pensamento. Ademais, competirá a esses conselheiros definir o que é verdade ou mentira? Será que, eventualmente, serão censurados e perseguidos somente seus desafetos políticos? Ou indivíduos com ideologia distinta desses conselheiros?
O PL em análise já foi aprovado em sua casa originária, ou seja, o Senado Federal, e aguarda sua apreciação na Câmara dos Deputados. No dia 6 de abril último, foi votado um requerimento de urgência para apreciação do PL das Fake News. Entretanto, não foram obtidos os necessários 257 votos para sua aprovação; e, de fato, não vislumbro qualquer urgência para a análise de um projeto de lei completamente prolixo, desnecessário e que, em vez de fomentar o livre trânsito de ideias, apenas limita, controla e cerceia a liberdade de expressão, reduzindo, também, a obtenção de informações através dos mais variados meios, e atenta diretamente contra o preceito constitucional previsto no artigo 5º, inciso XIV, qual seja “é assegurado a todos o acesso à informação”.
Por Thaméa Danelon, Procuradora da República (MPF) desde dezembro de 1999, ex-coordenadora do Núcleo de Combate à Corrupção em São Paulo/SP; ex-integrante da Lava Jato/SP; mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo (ESMPSP); professora de Direito Processual Penal e palestrante