Opinião – O Tucano e o JavaPorco

E em meio a toda essa comoção, os animais mais animados puxaram um coro curioso: Lama! Lama! Lama! Um a um, em frenesi, os porcos e javalis se refestelaram no barro, rolando no próprio esterco, escreve Caio Coppolla

14/04/2022 06:20

A fábula do pássaro que, sujo de lama, não conseguiu mais voar

Imagem ilustrativa: reprodução.

Há algum tempo em um lugar não tão distante, havia um tucano diferenciado. Ele morava em cima de um muro, como outros da sua espécie, mas sempre se destacou: voava mais alto, tinha plumagem viçosa e era respeitado pela fauna da sua região. Seu canto era ouvido e repercutido, muitos animais seguiam seus conselhos e recomendações.

Do alto do seu muro, o tucano enxergava mais longe e piava seu alerta sempre que o perigo se aproximava: “Cuidado com o javaporco! Cuidado com o javaporco!”. Agressivo e desagradável, o suíno dominava todas as terras conhecidas, mas sabia que, naquelas bandas, quem mandava mesmo eram os pássaros bicudos. E foi assim por muitos e muitos anos.

Naturalmente, o tucano envelheceu. Suas asas já não batiam com o mesmo vigor e seu cantar não ecoava com a mesma potência. Mas seu prestígio permanecia intacto: as aves mais jovens, que assumiram suas funções, o tratavam com deferência, e toda a bicharada reconhecia seu valor. Ainda assim, o tucano só tinha olhos para o passado e para o futuro que poderia ter sido: “ah, se eu tivesse mais uma oportunidade”, resmungava o velho pássaro remoendo seus erros e infortúnios.

Até que um dia, muito amargurado, o tucano decidiu sair do muro onde residiu por décadas e foi se empoleirar numa árvore antiga e doente, que nunca havia dado frutos. O bando estranhou, mas ninguém deu muita atenção à rebeldia tardia de uma ave aposentada – soberbos, os pássaros esqueceram que há criaturas do mato que sabem farejar ressentimento e vivem de plantar discórdia.

Tão logo o tucano melindrado se acomodou no tronco, um odor inconfundível anunciou uma presença indesejada: lá embaixo, ostentando um desabusado sorriso, estava o chefe javaporco. Era uma cena inacreditável. De cima do seu antigo muro, por anos o tucano desprezara os maus hábitos do quadrúpede, criticando-o publicamente. Por isso, o pássaro não conseguiu disfarçar seu desconforto com a visita inusitada:

– O que você faz por aqui, criatura? Não havia sido capturado?

O suíno desatou a rir:

– Agora sou um porco livre!

O tucano não conteve sua indignação:

– Impossível. Todos nós sabemos o que vocês fizeram, vocês saquearam o celeiro… Como você foi libertado?

– Como? – ironizou o javaporco – a pergunta certa é ‘por quem?’.

– Então, por quem?

– Ora, fui libertado por bons companheiros! – gargalhou o suíno revelando caninos ainda bem afiados que impressionaram o tucano.

Conforme a risada se desmanchou, o chefe javaporco mudou o tom e apelou à vaidade do velho pássaro:

– Sei que você nunca se bicou comigo, mas acho que é hora de descer do galho. Você é uma ave extraordinária, tucano! Com você ao meu lado, vamos dominar todas essas terras.

Surpreendido e lisonjeado, o tucano até tentou dissimular sua empolgação lançando objeções:

– Somos completamente distintos, porco. Eu plano nas nuvens, você chafurda na lama e todos os animais sabem disso.

Com ar professoral, o suíno ofereceu seu ponto de vista:

– Os animais sabem aquilo que lhes contam, tucano; se assustam até mesmo diante de uma falsa ameaça. Além disso, embora sejamos diferentes por fora, somos idênticos em nossas ambições. Ou não?

Seguiu-se um profundo silêncio. O javaporco oferecia tudo que o tucano mais desejara, mas o preço era sua própria história, seus princípios, sua consciência. Sem dar um pio, o velho tucano bateu asas, pousou nos ombros do grande suíno e prendeu sua respiração. Afinal, diferenças poderiam ser superadas, já o mau cheiro…

Os novos aliados causaram alvoroço quando apareceram juntos. Desmoralizados, os tucanos, assistiram em choque à troca de elogios entre os antigos adversários – toda a fauna se perguntava se aquela rusga anterior entre aves e suínos não passara de um grande teatro. Na cerimônia de oficialização da aliança, o velho tucano foi o primeiro a falar, enquanto as gralhas tomavam nota:

– Temos, sim, nossas divergências, mas o propósito que nos une é muito maior. Somos idênticos em nossas ambiçõesem prol do bem comum e contra a grandeameaçaque nos cerca.

Treinados para reagir a certos estímulos, os macacos irromperam em palmas e gritos, mas quando o ambiente se acalmou, foi a vez do chefe javaporco discursar:

– É muito bom, pra variar um pouco, ver um tucano ter a humildade de descer da sua árvore frondosa e pisar o chão de barro com a gente. Hoje, eu não preciso mais olhar para cima para olhar nos olhos desse camarada; hoje, finalmente, nós estamos no mesmo nível.” – celebrou o chefe, enquanto outros porcos e javalis batiam as patas na terra, grunhindo e roncando a plenos pulmões. O chefe interrompeu a algazarra e continuou emocionado:

– Por essa grandeza de caráter, a partir de hoje, você é um dos nossos, meu velho pássaro. De agora em diante, tucano, todos aqui vão te chamar de ‘companheiro’, porque você é tão porco quanto cada um de nós! E todos os animais saberão que nós somos iguais em nossa porquice!

“- Iguais! Iguais! Iguais!” – gritava a porcalhada enquanto as lideranças suínas lambiam as penas do tucano exaltando-o como companheiro.

E em meio a toda essa comoção, os animais mais animados puxaram um coro curioso: Lama! Lama! Lama! Um a um, em frenesi, os porcos e javalis se refestelaram no barro, rolando no próprio esterco. A sujeira fétida e viscosa respingou nas penas outrora lustrosas do tucano, que tentou disfarçar seu nojo e sair às escondidas. A retirada estratégica foi interrompida pelo chefe javaporco, que avistou seu novo aliado e fez um convite irrecusável:

– Agora que é um de nós, nosso companheiro vai chafurdar com a gente!

Entre guinchos e o bater de cascos, o velho tucano se viu obrigado a participar da celebração e rolou no lamaçal – um ritual imundo que se repetiria em todas as reuniões com seus companheiros suínos.

Ao deixar este primeiro encontro, o tucano estava irreconhecível… e ao tentar bater as asas para levantar voo, percebeu que a lama e a sujeira haviam estragado suas delicadas penas. Por mais que se esforçasse, ele não conseguia decolar; frustrado, o velho pássaro chegou a pedir carona na garupa de outros animais, mas nenhum deles conseguia suportar seu fedor. Com as penas arruinadas, o tucano nunca mais voou. Seu lugar, agora, era nos ombros do javaporco.

Moral da história: tucano que desce do muro pra andar com porco, pega mau cheiro e não consegue mais voar.

 

 

 

 

Por Caio Coppolla, bacharel em Direito pela USP, Caio Coppolla é comentarista político, articulista, palestrante e apresentador do Boletim Coppolla, na Rádio & TV Jovem Pan