O mais provável, no entanto, é que se insurjam contra seus próprios atos e palavras – para certas pessoas, coerência não é vinculante e prescreve muito rápido. Escreve Caio Coppolla
29/04/2022 06:08
”O legislador tem a rara oportunidade de trazer para a lei o que um ministro do STF já praticou, incólume, fora dela”
É ponto pacífico no debate público esclarecido – e intelectualmente honesto – que o deputado federal Daniel Silveira foi investigado em um inquérito inconstitucional, preso ilegalmente, e julgado por um Tribunal suspeito. Capitaneou esse processo o xerife do STF, dr. Alexandre de Moraes, que demonstrou enorme versatilidade nos papéis de vítima, investigador e juiz do caso. Além de polivalente, o ministro se provou inventivo e voluntarioso: criou, ignorou e interpretou a lei conforme sua própria vontade.
A atuação de um magistrado à margem da legalidade é algo a ser repudiado e combatido. Contudo, no espírito de fazer dos limões uma limonada, abandonemos (por um instante) a premissa de que um juiz é obrigado a seguir a lei e imaginemos a utilidade e a justeza de certas decisões de Alexandre de Moraes, caso elas não fossem exceções casuístas ilegais, mas sim regras de aplicação geral previstas na legislação ou na jurisprudência – seguem duas dessas inovações normativas, contextualizadas e comentadas:
O flagrante perpétuo
Em 16 de fevereiro de 2021, cumprindo mandado judicial expedido por Moraes, a Polícia Federal prendeu o deputado Daniel Silveira – ele havia gravado e postado na internet um vídeo insultuoso dirigido a Ministros do STF. Ocorre que a Constituição [art. 53, § 2º] estabelece que “membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável”.
Flagrante é uma expressão de origem latina, vem do verbo flagare, que significa queimar. Ou seja, o flagrante pressupõe que o delito seja tão recente que a chama do crime ainda esteja ardendo. Salvo nos casos de crimes permanentes – aqueles delitos que se prolongam no tempo, como o sequestro –, quando a autoridade judicial toma conhecimento do fato, o flagrante, via de regra, já se exauriu… virou cinzas. Nas agressões verbais, a doutrina ensina que o crime se esgota tão logo a ofensa é proferida. Para o direito brasileiro, a gravação e divulgação de um crime nunca configuraram a continuação do delito registrado – trata-se, naturalmente, de uma prova do crime a ser usada no processo. Isso até a engenhosidade ímpar de Alexandre de Moraes entrar em cena:
“Considera-se em flagrante delito aquele que está cometendo a ação penal, ou ainda acabou de cometê-la. Na presente hipótese, verifica-se que o parlamentar Daniel Silveira, ao postar e permitir a divulgação do referido vídeo, que repiso, permanece disponível nas redes sociais, encontra-se em infração permanente e consequentemente em flagrante delito, o que permite a consumação de sua prisão em flagrante”.
Para encarcerar seu desafeto, o ministro-xerife instituiu o inédito paradoxo do flagrante perpétuo: crimes que, para todo o sempre, acabaram de acontecer; afinal de contas, estão filmados e postados! O legislador poderia aproveitar o precedente – validado pelo plenário da Câmara Federal e do STF, diga-se de passagem – e aplicar essa mesma lógica a todos os crimes registrados em imagem, especialmente aqueles veiculados nas redes sociais e outras mídias, como a imprensa televisiva, as plataformas de streaming e os aplicativos de mensagem.
Assim, crimes como furtos, assaltos, agressões físicas, latrocínios e homicídios gravados fortuitamente por câmeras de segurança ou mesmo telefones celulares seriam utilizados como base para expedição de mandados de prisão em flagrante (de vídeo). Até mesmo o registro intencional de crimes do colarinho branco – como pagamentos de propina – também ensejariam as ordens de prisão. Ato contínuo, a possibilidade de fiança seria afastada por estarem configurados os requisitos da prisão preventiva, que, a propósito, deveria ser determinada de ofício. Na esteira do que estabelece o Código de Processo Penal [art. 312, CPP], a aplicação da lei, a garantia da ordem pública e a instrução criminal estariam protegidas em todos esses crimes que, por estarem filmados, têm autoria e materialidade patentes.
A multa no processo criminal
Em 25 de março de 2022, contrariando jurisprudência recente do STF [ADI 5526/DF], Alexandre de Moraes determinou uma série de restrições à livre circulação do deputado Daniel Silveira – incluindo o uso de tornozeleira eletrônica – sem submeter os autos do processo à Câmara dos Deputados. Contudo, nos termos do artigo 53 da Constituição, é o Congresso Nacional que deve deliberar sobre a prisão ou a soltura de seus membros, e – por extensão, segundo entendimento majoritário do Supremo – o mesmo se aplica a medidas cautelares, como a utilização de dispositivos de rastreamento. Registre-se que o próprio Alexandre de Moraes foi o relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade na qual restou estabelecido que medidas cautelares impostas contra parlamentares pelo STF também devem ser submetidas ao crivo da casa legislativa no prazo de 24 horas.
Em protesto contra essa decisão manifestamente ilegal, Silveira se recusou a vestir a tornozeleira e declarou que permaneceria nas dependências da Câmara Federal – sob jurisdição da Polícia Legislativa – até que a questão fosse deliberada por seus pares. A retaliação veio a galope, com direito a coice, pinote e corcovo: o ministro-xerife fixou uma multa exorbitante de R$15.000,00 por dia por descumprimento de ordem judicial e, de quebra, determinou ao Banco Central que bloqueasse todas as contas do parlamentar. Pressionado pela privação dos meios financeiros para sustento próprio e da sua família, Silveira capitulou e cedeu aos caprichos do confiscador togado.
Em artigo publicado aqui na Gazeta do Povo, a Procuradora da República, dra. Thaméa Danelon, esclarece que: “a fixação de multa diária contra investigado ou réu em processo criminal não tem qualquer previsão na nossa legislação penal, pois caso haja o descumprimento de uma determinação judicial a própria lei prevê a aplicação de outra restrição (medida cautelar) mais gravosa, inexistindo, assim, a possibilidade de multa diária, providência muito comum quando se trata de ações cíveis, mas nunca penais.”
Ocorre que a didática procuradora opera cingida à legislação, ao passo que nosso ministro-xerife não reconhece no direito os limites aos seus desígnios supremos… onde não há lei, ele cria! Tratemos, pois, de soltar sua prole ao mundo: que tal instituir multas no curso de ações penais para compelir, ou melhor, persuadir criminosos a cumprirem medidas cautelares e decisões judiciais em geral?
A título ilustrativo, segundo o Conselho Nacional de Justiça, há 347.289 mandados de prisão pendentes de cumprimento, incluindo 24mil foragidos e outros 323mil procurados – quantos deles têm bens e contas bancárias? Talvez fosse interessante bloqueá-los, de ofício, até que se apresentassem à Justiça; nesse mesmo sentido, a fixação de multa diária (R$100, R$1.000, R$10.000?) serviria como um incentivo para que fizessem a coisa certa. Os recursos arrecadados poderiam, inclusive, ser revertidos para o pagamento do auxílio-reclusão – vulgarmente conhecido como “bolsa-presidiário” – que custa mais de 20 milhões de reais por mês aos cofres públicos.
Seja instituindo o flagrante perpétuo por vídeo ou a fixação de multa contra investigados e réus no processo criminal, o legislador está diante da raríssima oportunidade de trazer para a lei o que um Ministro do STF já praticou, incólume, fora dela. Nesse caso, o tribunal e a imprensa seriam obrigados, por questão de coerência, a endossar a aplicação geral das criações casuístas de Alexandre de Moraes em sua perseguição judicial ao deputado Daniel Silveira. O mais provável, no entanto, é que se insurjam contra seus próprios atos e palavras – para certas pessoas, coerência não é vinculante e prescreve muito rápido.
Por Caio Coppolla, Bacharel em Direito pela USP, Caio Coppolla é comentarista político, articulista, palestrante e apresentador do Boletim Coppolla, na Rádio & TV Jovem Pan