A linha, mesmo que siga burra, pode ser um artifício para interferir no jogo que, este sim, ficaria emparedado pelo frenesi de raciocínios que se contradizem. E de tudo quanto é lado, escreve Edvaldo Santana
30/04/2022 06:10
”O que mudou entre 2012 e 2022? Apenas a motivação e o sentido da linha burra”
A lei pôs o Tribunal de Contas da União (TCU) na cena da desestatização. Controle necessário de qualquer desestatização no universo federal. Porém, até a inclusão, mediante leilão, de um simples transformador numa subestação requer o aval do TCU. Uma exuberância de poder.
Nos anos 1960, João Saldanha, um brilhante contador de história, que era também um excelente comentarista e exímio treinador de futebol, cunhou o termo “linha burra”. Caracterizava uma tática medíocre, que implicava o uso da regra do impedimento. Por tal regra, o atacante, quando depois da marca que divide o gramado, estará impedido se, no momento do passe, não tiver entre ele a linha de fundo pelo menos dois adversários.
Muitos treinadores passavam horas a treinar sua defesa para que formassem uma linha imaginária, paralela à da grande área, para pôr fora de jogo o adversário que os ultrapassasse sem a bola. Só não contavam com a habilidade do atacante. Bastaria driblar um dos perfilados e já não teria ninguém à sua frente, a não ser o goleiro. Por isso, a linha burra virou um axioma futebolístico. A linha é mesmo burra. E perdedora.
O TCU, nos debates acerca da capitalização da Eletrobrás, achou sua linha demarcatória, cujos parâmetros são os critérios exigidos para cálculo do valor mínimo das ações ordinárias (ONs). O próprio Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que topou a empreitada pelo lado do governo, criou sua linha de “backs”. E briga por ela.
Sou daqueles que não têm a menor dúvida quanto à importância do TCU para o controle dos gastos e desperdício de dinheiro público. No setor elétrico, em especial no âmbito da tarifa, é extensa a lista de contribuições do tribunal. Há também uma lista menor de equívocos, como o que tornou a flutuação do mercado um custo para o consumidor. A Conta Covid, como ficou conhecido um daqueles empréstimos para as distribuidoras, é uma das consequências dessa intervenção do TCU.
Entendo que a avaliação da Corte de Contas, como um ponto de vista externo, faz todo sentido em decisões estratégicas e sensíveis como num processo de privatização. A etapa anterior, por exemplo, de definição do valor adicionado pelas concessões, não poderia ir adiante sem o aval do TCU. Lá foi estabelecido quanto de recursos seria destinado para o Tesouro (R$ 25 bilhões) e para as tarifas (R$ 32 bilhões).
Mas o objeto da análise também precisa fazer sentido e ter consequências objetivas. Não é o que se sucede nessa segunda fase da capitalização da Eletrobras. A avaliação não tem sido externa, tampouco politicamente neutra – dos dois lados. Mas estes nem são os aspectos mais relevantes. A insanidade política, onde prevalece o confronto estimulado, impõe esses desvios imperdoáveis. É perceptível o desconforto de alguns conselheiros do TCU, sobretudo dos mais técnicos.
O problema é que, em termos práticos, além do vazio de ideias nas discussões, não serão aplicáveis as decisões daquele tribunal para o caso específico. Ficou surpreso?
Em apertada síntese, a capitalização, que foi o meio escolhido para a privatização da Eletrobras, consiste na diluição do controle da União entre os demais acionistas. Certo volume de ações ordinárias será transacionado na Bolsa de Valores. A União, que cederá o controle, não exercerá o direito de adquirir parte dessas ONs. O TCU, e muito mais gente, entende que, mesmo para esse tipo operação, clássica no mercado de capitais, o valor mínimo das ações precisa de sua aprovação. Há controvérsia.
Em seu voto na reunião pública do dia 20 de abril, o Ministro Vital do Rêgo, o mais ferrenho defensor do aval do TCU, elencou quatro de seus “achados” – dele e de sua equipe. E essa lista, para o Ministro, será ampliada nos próximos dias.
Suponha que o TCU esteja certo e que o valor mínimo das ONs da Eletrobras, depois das correções exigidas pelo Ministro Vital do Rêgo, seja R$ 55. No período de 12 meses, incluindo abril de 2022, o valor médio dessas ações estava em torno de R$ 38, para um máximo de R$ 43 e um mínimo de R$ 29. Chegou a R$ 17 nos primeiros meses de 2020, por causa da pandemia.
Com esse histórico recente, qual seria a conclusão do TCU frente ao valor praticado das ONs, que é 30% menor que o mínimo calculado? Que o mercado errou. Que os compradores e os vendedores das ações, veja só, deveriam seguir a rotina de cálculo com as ponderações da corte de contas. Sim. O TCU tutelaria o mercado de capitais.
Naquela reunião de 20 de abril, um dos ministros, dos mais lúcidos, chegou a dizer que a precisão do valor da ação dependeria do mercado, que corrigiria os erros. Certo ele. A discussão, que durou mais de duas horas, e ainda teremos outras tantas, não era objetiva. Claro que a saída da União não deve ser a qualquer preço, daí a inspeção do TCU, mas a coerência das decisões não pode ser desprezada.
Uma lição: em 21 de novembro de 2012 as ONs da Eletrobras chegaram a R$ 7,5. Eram os efeitos da Medida Provisória (MP) 579, que quebrou a empresa. O TCU nada fez para restringir aquela MP. Deu de ombros. Não sei como se manifestou o hoje Ministro Vital do Rêgo, então um influente senador da base do governo que articulou a MP.
O TCU, em parelha com o Regulador, também nada disse sobre as termelétricas que, em virtude da localização e da modalidade da operação, retirarão muito valor da Eletrobrás e elevarão absurdamente as tarifas.
O que mudou entre 2012 e 2022? Apenas a motivação e o sentido da linha burra. Lá, a linha, medíocre ou não, não interessava. Valeria gols em impedimento e até com as mãos. O árbitro fingiu que não era com ele. Agora, a linha, mesmo que siga burra, pode ser um artifício para interferir no jogo que, este sim, ficaria emparedado pelo frenesi de raciocínios que se contradizem. E de tudo quanto é lado.
Por Edvaldo Santana é doutor em engenharia de produção e ex-diretor da Aneel.