Opinião – Do que posso falar?

E que não venham com a conversinha de que é verdade, de que é a pura verdade. Não importa se está juramentado, autenticado, homologado. Há assuntos sobre os quais não podemos falar. E ponto final. Escreve Luís Ernesto Lacombe

27/08/2022 06:12

”O que posso? O que podemos? É aconselhável calar, melhor engolir palavras, frases inteiras, uma indigestão de parágrafos”

De coisas como praia, férias, comida, poesia, ainda podemos falar, certo? Foto: Pixabay

Eu posso falar de receitas de bolo, tortas, mousses… Eu posso falar de chocolate, brigadeiro… Talvez de massas: lasanha, canelone, ravioli. De risoles! Pastéis, torresmo… Fritura não deveria fazer mal. E olha que não sou glutão. Se houvesse uma pílula que substituísse as refeições, eu tomaria sem reclamar. Mas acho que posso falar de culinária, de forno e fogão. Pelo menos, por enquanto.

Posso falar de poesia, da “tríade parnasiana”: Olavo Bilac, Alberto de Oliveira e Raimundo Correia. Métrica, ritmo, rima, versos decassílabos, alexandrinos, trovas. Gosto também dos modernistas, principalmente Drummond, Mário de Andrade, Dante Milano. Sou louco por Manuel Bandeira. Sou louco por sonetos, pelos quatorze versos. Já publiquei três livros com poemas nessa forma fixa. Devo retirá-los de catálogo? Ainda posso falar deles?

E os passeios na infância, banhos de mar… Posso falar de praia? Ainda consigo ouvir os vendedores na areia: “Olha o mate! Biscoito Globo!” Devo tapar os ouvidos? Quero as ondas, quero mergulhar nas crônicas de Rubem Braga, rever árvores frutíferas, passarinhos, dar piruetas, falar de saltimbancos, conversar com meus mortos. Ainda posso falar, ainda posso escrever? Talvez sobre a bondade, sobre farras, férias e alegrias diversas…

Pensei em deitar na grama, observar o formato das nuvens, que figuras elas formam? Um cavalo, um cachorro, um bicho desconjuntado, mapas de países, um coração apaixonado. Posso falar da primeira namorada? É memória tão distante… Talvez permitam que eu fale do amor da minha vida, da eternidade que construímos juntos nos últimos trinta anos. Ainda posso falar de romance assim?

Peço licença para falar de minhas andanças pelo mundo, do Brasil que percorri de ponta a ponta, de leste a oeste. Vi mar de todas as cores, tons de azul, de verde, tons de cinza. Vi montanhas, pedras monumentais. Senti frio, calor escaldante, fui levado pelo vento, fui na brisa, sem pressa. Exigirão silêncio sobre isso tudo? Os personagens que conheci, as histórias que testemunhei, que ouvi, vivi e contei…

O que posso? O que podemos? É aconselhável calar, melhor engolir palavras, frases inteiras, uma indigestão de parágrafos. Silêncio. E que não venham com a conversinha de que é verdade, de que é a pura verdade. Não importa se está juramentado, autenticado, homologado. Há assuntos sobre os quais não podemos falar. E ponto final.

 

 

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

 

Por Luís Ernesto Lacombe é jornalista e escritor. Por três anos, ficou perdido em faculdades como Estatística, Informática e Psicologia, e em cursos de extensão em administração e marketing. Não estava feliz. Resolveu dar uma guinada na vida e estudar jornalismo. Trabalha desde 1988 em TV, onde cobriu de guerras e eleições a desfiles de escola de samba e competições esportivas. Passou pela Band, Manchete, Globo, Globo News, Sport TV e atualmente está na Rede TV