Opinião – É irresponsabilidade manter o Supremo com poder processual exagerado

É um despautério que processos de questões particulares, já julgados em três instâncias — limite máximo de julgamentos adotado nas principais democracias — sejam encaminhados ao Supremo para outro julgamento. Escreve José Jácomo Gimenes

31/08/2022 06:41

Estátua A Justiça, de Alfredo Ceschiatti, praça dos três poderes, Fachada do Supremo Tribunal Federal (STF). Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

O nosso sistema judicial vem num crescente explosivo de número de processos. Medidas e mudanças para enfrentamento do problema estão sendo tomadas em todas as Justiças – federal, estadual, trabalhista, eleitoral e militar – e em todas as instâncias. O Supremo Tribunal Federal (STF), em 2004, vencido por um mar de processos, patrocinou aprovação congressual de um poderoso filtro, a chamada “repercussão geral”, para reduzir a o número de processos a serem julgados pela Corte, além de implantar administrativamente vários outros procedimentos, como o Plenário Virtual, sessões extraordinárias, digitalização, núcleos de apoio especializados, estruturação de dados e outros, conseguindo considerável progresso, mas ainda muito longe da eficiência desejada para uma Suprema Corte.

Chegou a vez do Superior Tribunal de Justiça, corte nacional de fundamental importância, criada pela Constituição de 1988, ápice da chamada justiça comum para conflitos infraconstitucionais. Em 1990, o STJ recebeu 14 mil processos; em 2000 recebeu 154 mil;  230 mil em 2010 e 412 mil em 2021. O espantoso crescimento também inviabilizou a corte infraconstitucional, gerando a necessidade incontornável de uma invenção para enfrentar o problema. A invenção escolhida foi o patrocínio e aprovação no Congresso, em 2022, também de um filtro processual, a chamada “relevância”, com objetivo de reduzir drasticamente o número de processos a serem julgados pelo tribunal.

Como era de se esperar, o novo instituto tem recebido inúmeras críticas. O magistrado Bruno Montenegro Ribeiro Dantas traduziu muito bem momentos de mudanças e transição como o presente, lembrando que “a eterna luta do homem para o aperfeiçoamento do mundo em que vivemos e de suas instituições passa, necessariamente, por movimentos pendulares, onde a seiva vital da esperança, ora fenece, ora se revigora”. Esse é um momento histórico, em que os defensores da mudança, de boa-fé e na esperança de estarem aperfeiçoando o sistema judicial, se regozijam com a conquista e, por outro lado, os defensores de mais amplo acesso ao Judiciário apresentam suas respeitáveis considerações divergentes.

Ainda não é previsível o impacto da mudança na atuação do STJ a partir aplicabilidade do filtro de relevância, mas um ponto é certo: havia a necessidade de uma invenção, de uma mudança. A explosiva quantidade de processos encaminhada ao STJ, acima quantificada, inviabiliza o funcionamento correto do tribunal. Os processos que chegam ao STJ, com ínfimas exceções, já foram examinados e julgados em pelo menos duas instâncias (juízo monocrático local e colegiado de tribunal), ocorrendo muitos casos de três julgamentos (dois no tribunal, turma e seção), legitimando a mudança, pelo efetivo cumprimento do princípio do duplo grau de jurisdição e pela conformação tranquila com tratados internacionais e sistemas judiciais das grandes democracias.

Duas necessidades foram atendidas, entretanto, outra necessidade incontornável, tão forte e até mais ruinosa, ainda impede o funcionamento eficiente do nosso sistema judicial.  É a necessidade de urgente redução da monstruosa competência processual do Supremo Tribunal Federal, não resolvida com o filtro de “repercussão geral” implantado em 2004. A exagerada competência processual da nossa Suprema Corte virou piada na comparação com suas congêneres. As estatísticas mostram que o Supremo, com 11 ministros, recebeu 77.449 processos em 2021, um aumento de 3,08% em relação ao ano de 2020. Do total de recebidos, 23.268 são ações originárias (30,04%) e 54.181 processos recursais (66,96%). No total, proferiu 98.198 decisões, das quais 82.781 monocráticas (84,3%) e 15.417 decisões colegiadas (15,7%). A Corte Suprema americana julga por volta de 100 processos por ano;  a alemã, que conta com 16 juízes, 6.200; a italiana 300; e a francesa 200. Será que o mundo está errado e só o Brasil está certo?

A “repercussão geral” foi um grande avanço processual considerável, permitindo que o Supremo decida se vai julgar (ou não) uma questão constitucional encaminhada via Recurso Extraordinário. Entretanto, é uma ferramenta trabalhosa, que exige muito tempo e energia, pois tem de ser decidido pelo Plenário, exigindo a análise e decisão fundamentada de milhares de Recursos Extraordinários (11.255 em 2021), encaminhados continuamente. Esse elevado número de Recursos Extraordinários, somado aos números dos outros dois tipos de recursos encaminhados ao Supremo (42.812 Agravos em Recursos Extraordinários e 114 Agravos Internos), totalizaram o espantoso número de 54.181 processos recursais que o Supremo teve de analisar em 2021, para recusar o julgamento, ou para julgar o mérito.

Os números são estarrecedores, inviabilizam a eficiência esperada do STF. Uma avalanche de processos recursais, questões particulares, que deveriam ser resolvidos até a terceira instância, impedem o Supremo de julgar em tempo razoável centenas de demandas nacionais objetivas. Isso inclui litígios políticos candentes e conflitos federativos urgentes, questões fundamentais para o desenvolvimento do país, gerando um defeito estrutural que contamina todo o sistema judicial, aumentando exponencialmente o número de processos repetitivos, pela demora na formação de jurisprudência segura.

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Mesmo com a divisão do Supremo em duas turmas de julgamentos, desfigurando o Plenário constitucionalmente representativo da nação, para enfrentar o monstruoso número de processos, o problema não foi resolvido. A disfuncionalidade, lentidão, insegurança das decisões monocráticas e provisórias decorrentes têm dado motivos para críticas da sociedade e alimentado tensões desabonadoras para a Corte.

É um despautério que processos de questões particulares, já julgados em três instâncias — limite máximo de julgamentos adotado nas principais democracias — sejam encaminhados ao Supremo para outro julgamento. Isso ocorre porque a Constituição de 1988, que criou o STJ (33 ministros), concedeu-lhe uma insólita competência parcial para julgar somente em relação às leis comuns, deixando as questões constitucionais alegadas no mesmo processo para o Supremo, onde tudo pode ser mudado pela visão constitucional aplicada ao caso. Vários juristas têm denunciado a excessiva competência do Supremo e pregado a necessidade de mudar.

A descabida quantidade de competência processual prevista na Constituição concede ao Supremo (e aos seus ministros individualmente) descomunal poder, sem similar nas democracias do planeta. A cessão de competência processual – e por consequência poder  – seria um ato de sabedoria e grandiosidade, em prol da sociedade brasileira. Esta solução já foi apresentada pelo ministro Barroso, no sentido de limitar o número de processos a serem julgados por ano, escolhidos discricionariamente pela Corte, como no modelo americano, transitando em julgado os demais.

Outros ministros já reconheceram o estado de morbidez do sistema judicial e também acenaram caminhos. O ministro presidente Luiz Fux chamou de “moléstia” a exorbitante judicialização. O ministro decano Gilmar Mendes, também pregando a necessidade de urgente desjudicialização, destacou a danosa dependência da sociedade em relação ao Judiciário.

Com o atual modelo das nossas cortes superiores perde toda sociedade brasileira. As grandes teorias jurídicas apaixonadamente debatidas e as reformas nos códigos de processos pouco valem como força renovadora ante a inadequação da cúpula para conclusão do Direito. Por outro lado, esse modelo, vencido e doente, com quatro instâncias de julgamento na prática – juízo local, tribunal de apelação, tribunal superior e Supremo – e a acumulação de processos repetitivos decorrentes da demora, incrementam o famoso “custo Brasil”, pois exige contínuo crescimento da máquina judicial e agregados como Ministério Público, Procuradorias, Defensorias, advocacia, servidores e cursos jurídicos, exigindo mais orçamento e mais cargos. É irresponsabilidade manter um estado de coisa disfuncional e prejudicial para o país. A nossa Suprema Corte necessita rever e reduzir seu espaço de atuação e poder processual para ser efetiva, eficiente e ganhar legitimidade.

Em conclusão, para não ficar no vazio da crítica sem apontar soluções, segue sugestão de pontos essenciais para enfrentamento do problema: transferência de competência constitucional recursal do Supremo aos tribunais superiores, visando à conclusão de todos os processos subjetivos na terceira instância, no máximo; manutenção do controle de constitucionalidade somente pela via concentrada (leis e jurisprudências dos tribunais superiores); redução para poucas centenas os processos que o Supremo deve julgar anualmente; regulação detalhada, com prazos certos e fiscalizáveis, dos casos excepcionais de decisão monocrática e pedido de vista; e  ampliação do número de ministros do STJ (a Corte de Cassação da Itália tem 302 juízes e a da França 87) para atender as novas competências.

Como disse Platão, “a necessidade é a mãe da invenção”. É clarividente a necessidade de reduzir drasticamente a competência processual do Supremo. Essa é uma verdade que vai pesar historicamente para os responsáveis. A lentidão, obscuridade e insegurança podem até ser um bom campo de trabalho para os operadores do direito, uma zona de conforto para poucos, mas é uma tragédia de atraso e perdas para a sociedade. A elite jurídica, que detém o controle e direção do pensamento jurídico, necessita agir para o bem do Brasil, ceder, cortar na carne, despertar da indiferença, protagonizar a mudança necessária na competência processual da Suprema Corte, para registrar na história que cumpriu o seu papel, que promoveu o bem e lutou para aprimorar o mundo, em benefício da maioria.

 

 

 

 

Por José Jácomo Gimenes, juiz federal, foi professor do Departamento de Direito Privado e Processual da Universidade Estadual de Maringá (1989 a 2017).

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