Lula e seu entorno têm o dever de resistir à tentação de repetir a roubalheira do passado, pois certamente não foi para isso que ele foi eleito. A sociedade brasileira estará de olho. Escreve Diogo Schelp
31/10/2022 09:50
Lula, presidente eleito neste domingo (30), deixou o improviso para o ato na Av. Paulista e ateve-se a um discurso de vitória protocolar, lido diante de jornalistas em um hotel de São Paulo. Em meio a uma repetição dos mantras da campanha, como o combate a pobreza e a defesa da democracia, e críticas ao presidente Jair Bolsonaro, o candidato derrotado, Lula fez o que era para ser entendido como um discurso de união e de pacificação do país.
Falou em “governar para todos os brasileiros” e em “tomar decisões em diálogo com a sociedade”. A declarada intenção de Lula de fazer um governo de conciliação é necessária, para não dizer obrigatória. Mas a distância entre o discurso e a prática costuma sempre ser enorme.
Em 2018, após a confirmação de sua vitória nas urnas, Bolsonaro também fez um discurso de união, prometendo fazer um governo que trabalharia, “verdadeiramente, para todos os brasileiros” e lembrou que o país abarcava “diversas opiniões, cores e orientações”. Não se furtou, porém, de realçar os pontos centrais da sua então vitoriosa campanha e de criticar as gestões passadas do PT, especialmente no campo da política externa.
Assim são, portanto, discursos de vitória: não se pode virar as costas para as aspirações dos eleitores que estiveram do lado vencedor, pois são eles os protagonistas e são eles, em primeiro lugar, que legitimam o ganhador.
Não cumprir, porém, o discurso de união é um erro, em especial em um país agora tão dividido politicamente como o nosso. Bolsonaro cometeu esse erro e pagou com a frustração de seus planos de reeleição. Ignorou — desprezou, até — a parcela significativa dos brasileiros que não compartilhavam de seus planos armamentistas, da militarização do governo civil, dos embates com os outros poderes da República e da estratégia de deixar a natureza seguir o seu curso na pandemia do novo coronavírus. “O povo do meu lado” a que Bolsonaro se referia em seus discursos era o povo monolítico dos populistas, não o povo plural da Constituição. Diálogo e negociação não eram o seu forte, haja vista a recusa em articular com os governadores uma resposta unificada à covid-19.
Lula tem tudo para incorrer no mesmo erro. Afinal, o presidente eleito se ressente do período em que ficou preso por corrupção (“tentaram me enterrar vivo”, disse ele), o que pode resultar em revanchismo político, e parece realmente acreditar que quem optou por Bolsonaro estava no campo contrário ao da democracia. E não é bem assim.
Para transformar o discurso de união em prática, Lula precisa começar fazendo a leitura correta do resultado das eleições. Mais do que uma aprovação ao seu projeto de país e às pautas do PT, o que as urnas confirmaram foi a rejeição da figura de Bolsonaro. Mas foi uma rejeição parcial, de apenas um pouco mais da metade dos eleitores. Cerca de 2,1 milhões de eleitores a mais penderam para o lado do petista, o que representa um margem de vantagem pequena.
Para unir, de fato, o país e não aumentar as fissuras dessa polarização, Lula precisa evitar guinadas radicais em determinadas áreas, tais como a pauta de costumes, as boas práticas macroeconômicas e a liberdade de imprensa.
Se ele resolver pesar a mão na adoção de políticas identitárias, se começar a reverter a tendência de diminuição do tamanho do Estado na economia e se fizer movimentos para cercear (“regular”) as vozes dissonantes na imprensa e nas redes sociais, Lula vai apenas aumentar o fosso que o separa da metade dos brasileiros que desconfiam de seus propósitos.
E, acima de tudo, a vitória não deve ser compreendida como uma licença para lotear o Estado e deixar a corrupção correr solta, como aconteceu nos governos anteriores do PT.
Lula e seu entorno têm o dever de resistir à tentação de repetir a roubalheira do passado, pois certamente não foi para isso que ele foi eleito. A sociedade brasileira estará de olho.
Por Diogo Schelp, jornalista, foi editor executivo da revista Veja, onde trabalhou durante 18 anos. Fez reportagens em quase duas dezenas de países e é coautor dos livros “Correspondente de Guerra” (Editora Contexto), finalista do Prêmio Jabuti 2017, e “No Teto do Mundo” (Editora Leya).