A lição do trumpismo ao Brasil deveria ter sido aprendida, mas, ao que parece, quem está na rua no Brasil não entendeu o erro da base trumpista e ao que parece caminha para o abismo. Escreve Leonardo Coutinho
03/11/2022 08:14
”Nada é mais chavista que jornais, jornalistas e políticos festejando ou normalizando a ação paraestatal como resistência.”
Parece jogo de palavras ou discurso de quem não aceita resultado. Mas olhando de longe, bem longe, fica a sensação de que há um engano generalizado no petismo – seja ele oficial, militante, acadêmico, redacional, judiciário e carcerário. O ex-presidente Luíz Inácio Lula da Silva, que recebeu mais de 60 milhões de votos, ganhou a disputa, mas ele e sua turma se enganam ao pensar que arrasaram e que aterissarão no Planalto com um cheque em branco. A despeito de seus méritos políticos e de seus seguidores fiéis e reconvertidos, Lula não venceu nada. Foi Jair Bolsonaro que perdeu. Em grande parte, para ele mesmo, como consequência de uma série de fatores que vão desde o seu temperamento quase sempre irascível, aliados insanos e um vício de jogar para uma base permanentemente inflamada.
Lula ganhou a eleição e toda a patacoada de protestos que contestam o resultado não passa de uma combinação de desalento e manipulação. O bolsonarismo parece não ter entendido quão gigante saiu dessas eleições. Estão tão grandes que embora seja impossível fazer uma afirmação honesta, é razoável estimar que apesar de ter perdido, o número de bolsonaristas é de longe maior que o de petistas.
A suspeita se baseia no fato de que Lula não ganhou pelo que ele é, representa ou foi. Parte importante de seu capital eleitoral veio do eleitor que rejeitou Bolsonaro. É a tal da opção pelo menos pior. Ou até mesmo quem por meio de uma conta funesta aposta na viabilidade do vice, o ex-governador Geraldo Alckmin, que já tentou a presidência duas vezes e perdeu.
Na prática parece não mudar muito a discussão se foi Lula que venceu ou Bolsonaro que perdeu. Afinal, no dia primeiro de janeiro, o petista receberá a faixa presidencial e iniciará o seu terceiro mandato. A questão, é que Lula não está por cima da carne seca. Ele certamente começará seu governo com o mesmo clima de lua-de-mel de 2002, quando a imprensa o tratou com muito carinho.
Bolsonaro nunca foi aceito como presidente. Muito antes, por sinal, ainda em 2018, os diretores dos principais meios de comunicação do país se reuniram para discutir como impedir uma possível vitória do então deputado federal, ainda que fosse “fingindo fazer jornalismo”. Bolsonaro nunca entendeu isso e mordeu cada uma das iscas que lhe eram jogadas e os quatro anos que se seguiram foram uma autêntica pancadaria.
A indignação e o sentimento de injustiça dos bolsonaristas tem fundamento. Eles foram achincalhados. Desumanizados, eles foram chamados de gado. Reduzidos a fascistas, viram uma espécie de cancro golpista que precisa ser extirpado da sociedade brasileira.
Atordoados pela derrota, os eleitores de Jair Bolsonaro foram para as ruas no vácuo deixado pelo presidente que ficou dois dias em silêncio e quando falou não foi suficiente claro para seus seguidores. Um dia depois, ele precisou ser explícito. O presidente Bolsonaro entendeu que apesar de cheio de maquinações e injustiças, o processo eleitoral acabou. É hora de seguir em frente. Lamber as feridas, reagrupar a base e olhar para o futuro.
Quando vão para as ruas, fecham estradas e pedem a intervenção militar a partir de uma interpretação equivocada da Constituição Federal, os bolsonaristas dilapidam o próprio patrimônio político e eleitoral que eles mostraram ter por mais 58 milhões de votos, embora, obviamente não seja correto chamar todos que votaram em Bolsonaro de bolsonaristas.
Desde o marco inicial do governo de Bolsonaro, o PT e seus assemelhados trabalharam diariamente para convencer meio mundo de que a democracia estava em perigo. E que só eles poderiam salvar o Brasil da barbárie. Um trabalho de difamação tão eficiente que fez com que Bolsonaro se tornasse tão horrendo, que até Lula – que estava preso por seu papel central o maior esquema de corrupção já descoberto – depois que saiu da cadeia e teve suas condenações anuladas por meio de uma manobra jurídica ficou ganhou a simpatia de muita gente como se fatos conhecidos e comprovados jamais tivessem existido.
Mas ele precisa dizer com todas as letras para aqueles que estão sendo manipulados por gente desinformada ou até mesmo mal-intencionada a questionar os resultados. Há um exemplo muito recente que deveria servir de alerta. O americano Donald Trump perdeu a reeleição mais pelos seus erros que pelas virtudes de Joe Biden, mas saiu muito maior politicamente do que na vitória colhida quatro anos antes. Líder de um movimento que certamente o tornaria um candidato viável e possivelmente vencedor nas eleições de 2024, Trump preferiu cair na esparrela de contestar os resultados e se enforcou ao convocar seus apoiadores para rua e ao ficar em silêncio enquanto eles marchavam para o Capitólio. O resultado foi que em menos de duas horas tudo que se dizia contra ele se seu governo representariam para implosão da democracia se tornou realidade.
Não adianta discutir se foi uma armadilha ou se houve manipulação de serviços de inteligência estrangeiros por meio da figura bizarra do QAnon, ou que seja. Trump derreteu e muito da reputação e adesão ao seu grupo foi para o espaço. Quem mais perdeu foi Trump e seus apoiadores. Os eventos no Capitólio passaram a ser tratados como uma antevisão do caos no Brasil pós-eleitoral. A lição do trumpismo ao Brasil deveria ter sido aprendida, mas, ao que parece, quem está na rua no Brasil não entendeu o erro da base trumpista e ao que parece caminha para o abismo como os americanos que não entenderam que, agora sim como gado, caminhavam para o matadouro. O PT deve estar adorando.
Por fim, quem comemora organizada agindo como força paraestatal flerta e estimula um dos elementos de implosão institucional. Por mais que o Estado esteja fracassando na solução dos conflitos é do Estado que devemos cobrar um retorno à normalidade. Nada é mais chavista que jornais, jornalistas e políticos festejando ou normalizando a ação paraestatal como resistência. Lembra o surgimento de colectivos e milícias bolivarianas na Venezuela. Tomara que seja apenas um delírio. Tomara.
Por Leonardo Coutinho, jornalista, autor do livro “Hugo Chávez, o espectro”, pesquisador e comentarista sobre segurança e relações internacionais. Escreve semanalmente, desde Washington, D.C.